terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Questões sobre o direito ao esquecimento ...

Sobre o direito ao esquecimento ...



Opinião

Esquecimento não é direito e torna os fatos ainda mais vivos se judicializado

26 de novembro de 2016, 6h43
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A liberdade de expressão é um dos eixos estruturais do Estado Democrático de Direito, eis que se destina à criação de um mercado livre de ideias, à autodeterminação democrática do povo, à procura da verdade, ao exercício do poder e da atividade governamental, ao desenvolvimento pacífico da sociedade, à expressão da autonomia individual e à formação da opinião pública na democracia comunicativa[1].
O sistema anglo-saxão confere uma maior amplitude à liberdade de expressão, enquanto que o sistema europeu se inclina à sua restrição.
Sob o ângulo do Direito brasileiro, as liberdades de expressão e de imprensa são consagradas nos artigos 5º, inciso IX, e 220, parágrafo 1º, ambos da Constituição Federal. Apresentam uma significativa amplitude conceitual na ordem constitucional, pois servem de fundamento para outras liberdades, ocupando uma posição de preferência (preferred position doctrine) na ordem jurídica. Contudo, não são concebidas como um direito absoluto ou ilimitado, encontrando limites nos direitos da personalidade[2].
Reconhece-se, assim, uma coexistência entre as liberdades de expressão e de imprensa e os direitos da personalidade, de modo que a intimidade e a vida privada também devem ser objeto de proteção no Estado Democrático de Direito.
Nesse contexto, a constitucionalização do Direito Civil retrata a superação do dogma clássico da patrimonialização das relações privadas, emanando um conjunto de regras e princípios que se destina à proteção da pessoa humana, em observância aos princípios da unidade do ordenamento e da supremacia da Constituição.
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais também encontra guarida no Direito brasileiro, possibilitando a incidência imediata das normas constitucionais para nortear as relações privadas.
Assim, ganham expressão os direitos da personalidade, amplamente amparados tanto pela Constituição de 1988 como pelo Código Civil de 2002.
Para Limongi França, são “as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim da sua projeção essencial no mundo exterior”[3]. Vale dizer, são os direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, despontando como situações jurídicas existenciais reconhecidas ao indivíduo.
Nesse sentido, parte da doutrina tem invocado que o direito ao esquecimento, também conhecido como direito à autodeterminação informativa, “direito de ser esquecido”, de “ser deixado em paz” ou de “estar só” (“the right to be let alone”), seria um desdobramento dos direitos da personalidade.
Segundo essa corrente, o esquecimento é um corolário dos direitos da personalidade, em especial da privacidade, da honra e da dignidade humana, despontando como uma proteção do indivíduo face ao superinformacionismo. Ou seja, seu titular tem a pretensão de não ser mencionado pela mídia sobre fato pretérito que o submeta a constrangimento, ainda que verídico, devendo tal fato ser retirado do alcance público, pois, com o decorrer do tempo, caiu no esquecimento social[4].
Salienta-se que a discussão acerca da judicialização do esquecimento produz ressonâncias no âmbito do Direito Penal, sobretudo diante de casos criminais de notoriedade veiculados pela mídia ao longo do tempo.
Primeiramente, o direito ao esquecimento guarda relação com os direitos do preso. No Direito Comparado, decidiu o Tribunal Constitucional alemão que um canal de televisão fosse proibido de exibir um documentário referente a determinado acusado, impedindo que a imprensa explorasse, por prazo indeterminado, a pessoa do criminoso e sua vida privada, sob o risco de embaraçar sua ressocialização.
No Brasil, a “chacina da Candelária” foi um dos casos inéditos de reflexão acerca do direito ao esquecimento no Brasil. Ademais, jurisprudência pátria firmou o entendimento de que o acusado tem o direito de que seus antecedentes criminais não sejam divulgados após determinado período de tempo, com vistas à sua ressocialização, a teor do Enunciado 531, do Conselho de Justiça Federal.
Assinala-se que, ao menos no campo das penas, o esquecimento propicia o desenvolvimento da Justiça restaurativa, na qual o Estado deixa de ser preponderantemente repressor, inclinando-se à reconstrução do elo social entre a coletividade e o próprio infrator.
De todo caso, a jurisprudência brasileira ainda não conta com vastos precedentes sobre o direito ao esquecimento. A título de argumentação, essa matéria chegou à apreciação do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário 833.248 RG/RJ, envolvendo o caso do programa Linha Direta, exibido em 2004, firmando-se o entendimento pela repercussão geral do direito ao esquecimento na órbita cível, sob o fundamento de haver densidade constitucional e a necessidade de ponderação de princípios constitucionais.
Esse precedente é um marco na análise do tema, pois o esquecimento será analisado na perspectiva da vítima do delito, cabendo as seguintes reflexões: (i) até em que momento é possível alegar o esquecimento; (ii) se todo e qualquer fato do passado pode ou não ser apontado como objeto de esquecimento no presente; e (iii) em havendo o reconhecimento da ilicitude, discute-se qual seria a sanção mais apropriada para a proteção intimidade, ou seja, se necessária a tutela inibitória ou a tutela reparatória genérica ou específica.
Em outro caso, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815, a suprema corte se posicionara pelo afastamento de exigência prévia de autorização para a publicação de biografias. Porém, entende-se que esse tema vai mais além: atinge o campo do direito ao esquecimento.
O direito ao esquecimento também guarda relação com o regime ditatorial no Brasil, de 1964 a 1985. Diversos setores sociais defenderam um discurso ao esquecimento do período de exceção, havendo uma “clínica ao esquecimento”, sob o pretexto de que a Lei da Anistia fosse integralmente aplicada para ocultar um passado obscuro da história nacional.
Em outubro de 2016, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu o direito ao esquecimento de certo fato ocorrido durante o período ditatorial no Brasil. De acordo com esse posicionamento, os acontecimentos da época ditatorial foram anistiados à luz da Lei 6.683/1979, de modo que devem se tornar esquecidos do público.
Por outro lado, entende parte da doutrina que a ordem constitucional não privilegia o direito ao esquecimento, máxime nos casos ditatoriais, de modo que esse direito não pode ser considerado um desdobramento da dignidade humana, da privacidade ou de qualquer outro direito fundamental, sendo apropriada a referência ao “direito ao isolamento”[5]
O direito ao esquecimento também é discutido sob o prisma do Direito Digital, máxime se em colisão com as liberdades de expressão e de imprensa. Segundo Raphael Janny, “um mero descuido, na internet, é imperdoável, porque é inesquecível”[6].
Essa questão tornou-se ainda mais refletida a partir da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre o reconhecimento do direito ao esquecimento aos provedores de serviços de busca na internet, sobretudo da remoção de fotos e vídeos de “pornografia de vingança” (revenge porn).
Nos Estados Unidos e na União Europeia, adota-se o sistema do notice and takedown, ou seja, um procedimento que deve ser seguido pelos provedores de internet visando à proteção da intimidade, a ponto de excluir a responsabilidade dos próprios provedores diante de eventual litígio.
Sob o ângulo do Direito brasileiro, a Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) confere ampla proteção à liberdade de expressão em detrimento da intimidade e da privacidade no ambiente virtual.
Em novembro de 2016, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.593.873, firmou o posicionamento de que o pedido de direito ao esquecimento não pode ser direcionado ao Google, pois os provedores de busca não podem ser obrigados a eliminar de seu sistema os resultados de determinado termo, expressão, foto ou texto específico, por ausência de fundamento normativo, exceto no caso de encaminhamento do próprio provedor ao conteúdo de fotografias ou notícias (provedor de conteúdo)[7].
Salienta-se, outrossim, que o jornalismo investigativo é uma manifestação da liberdade de expressão, eis que, em geral, propicia a transparência e a divulgação de informações relevantes ao interesse público. Funda-se, pois, na premissa de que não há jornalismo sem investigação, como nos casos do Walter Gate, The Panama Papers e The Bahamas Papers.
Afirma-se, no entanto, que o esquecimento é incompatível com a liberdade de expressão e, acima de tudo, com o jornalismo investigativo.
Em outubro de 2016, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) apresentou uma petição perante o Supremo Tribunal Federal, com a finalidade de participar como amicus curiae no Recurso Extraordinário 833.248 RG/RJ, invocando os seguintes fundamentos: (i) o esquecimento não é previsto nem sequer amparado em qualquer norma constitucional, não havendo qualquer repercussão geral sobre o tema; e (ii) a história deve se encarregar dos fatos que podem ou não ser esquecidos.
Entende-se, dessa forma, que o jornalismo investigativo deve ser amplamente resguardado e difundido, com o escopo de contribuir para a elucidação de casos criminais, desde que desprovido de interesses econômicos e ideológicos e direcionado à veracidade na comunicação social.
Em suma, infere-se que a judicialização do esquecimento traz mais incertezas que segurança jurídica.
Primeiramente, os meios de comunicação têm acentuado interesse econômico na divulgação das notícias em geral, revelando-se dificultoso o esquecimento dos fatos sociais, sobretudo daqueles de maior notoriedade. Ademais, os meios tecnológicos são amplamente utilizados, tendo o potencial de divulgar, resgatar e petrificar os mais diversos acontecimentos históricos na sociedade da informação.
Além disso, o crime é um acontecimento de interesse público, de sorte que a coletividade tem o direito de ter acesso à informação dos fatos sociais e, acima de tudo, ao exercício do jus puniendi.
Eventual judicialização do esquecimento também geraria reflexos no âmbito processual criminal, vez que, se determinado o esquecimento de certo fato, a continuidade da persecução tornar-se-ia prejudicada diante do surgimento de novas provas.
Acrescenta-se, outrossim, que o sigilo dos autos já é um mecanismo jurídico apto, ao menos que temporariamente, a assegurar o segredo de Justiça dos casos criminais de repercussão social.
Por derradeiro, é dificultoso determinar um padrão de indenização civil nesses casos.
Assim, eventual proteção da intimidade deve recair nos mecanismos já existentes no âmbito dos direitos da personalidade, conferindo-se prioridade ao direito de resposta e à responsabilidade civil.
Portanto, é teratológico ou quiçá inviável judicializar o esquecimento, posto que o Direito não tem o condão de conter a memória nem o estado de consciência humana. O esquecimento não é direito e, se judicializado, tornará os fatos uma recordação ainda mais viva e instigante na vida social[8].

[1] MACHADO, Jónatas E. M. Difamação de figuras públicas: tutela jurídica e censura judicial à luz do direito português. Curitiba: Juruá, 2016, p. 19.
[2] NESPRAL, Bernardo. Derecho de la información. Periodismo: derechos, deberes y responsabilidades. Buenos Aires: Bdef, 2014, p. 30.
[3] FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 1025.
[4] Cf. PAIVA, Bruno César Ribeiro de. O direito ao esquecimento em face da liberdade de expressão e de informação. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 13, n. 22, p.273-286, jan./jun. 2014, p. 275.
[5] NETO, João dos Passos Martins; PINHEIRO, Denise. Liberdade de informar e direito à memória: uma crítica à ideia do direito ao esquecimento. Novos Estudos Jurídicos. V. 19, N. 3, p. 808-838, 20014, p. 835.
[6] JANNY, Raphael Lobato Collet. A liberdade de expressão e o direito ao esquecimento na internet. Revista da ABPI, Rio de Janeiro, n. 137, p.54-60, jul./ago. 2015, p. 54.
[7] STJ, 3ª Turma, REsp. 1.593.873, relatora ministra Nancy Andrighi. Julgado em: 11/12/2014.
[8] Cf. lançamento da obra: VALENTE, Victor Augusto Estevam. Crimes de imprensa e aspectos práticos de processo penal: liberdade de expressão, direitos da personalidade, inquérito policial, procedimento e comentários à Lei do Direito de Resposta (Lei 13.188/2015). Coleção de Ciências Criminais. Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha (coord.). 1. ed. Salvador: Juspodivm, 2017.
Victor Augusto Estevam Valente é advogado, mestre em Direito Penal pela PUC-SP, professor em Direito Penal da PUC-Campinas.
Revista Consultor Jurídico, 26 de novembro de 2016, 6h43

Sobre o trabalho escravo no Brasil

Eram escravos no Brasil e não sabiam. Agora o mundo todo ficou sabendo

Governo terá de pagar quase 5 milhões de dólares para 128 trabalhadores rurais que foram escravizados na Fazenda Brasil Verde, no Pará


Luis Sicinato de Menezes, 64, mais conhecido como Luis Doca, é um trabalhador rural aposentado, da cidade de Barras, no interior Piauí, a 130 quilômetros da capital, Teresina. Em seus 30 anos como peão de trecho (o famoso bico, que quer dizer trabalho temporário), andando de fazenda em fazenda no Norte do país, ele trabalhou no corte da juquira, uma mata rasa, considerada um estorvo para a expansão da agricultura e criação de gado. O trabalhador vive por um código de honra: um homem sempre cumpre sua palavra e nunca foge. Demorou muito para que ele entendesse que aqueles que buscavam seus serviços não compartilhavam de seus valores. A vida de Luís Doca é marcada por aliciamentos, ameaças de morte, trabalhos em situações desumanas, frequentemente sem receber. Não foram poucas as vezes em que voltou para casa sem nada. Só com a vida. "Antes, eu não entendia. Mas aí meti na cabeça. Todos os trabalhos que fiz na vida eram trabalho escravo", conta.
Luis Doca faz parte de um grupo de 128 trabalhadores rurais submetidos ao trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde, localizada em Sapucaia, sul do Pará, que processou o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). E ganhou. No primeiro caso sobre escravidão e tráfico de pessoas decidido pela Corte, o Estado Brasileiro terá que indenizar os trabalhadores em quase 5 milhões de dólares por conivência com o trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde, pertencente ao Grupo Irmãos Quagliato, um dos maiores criadores de gados do Norte do país.
Desde 1940, o artigo 149 do Código Penal Brasileiro prevê pena de dois a oito anos para quem reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Em 2003, a lei foi ampliada, entrando outras disposições que tornam mais amplo o combate a essa forma de exploração, como submeter alguém a trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho, e restrição da locomoção por dívida. Isso fez com que o país fosse reconhecido internacionalmente com uma das legislações mais combativas do mundo.
No papel, então, estava tudo certo e adequado para evitar abusos em um país cuja memória escravagista, que deveria ter acabado em 1888, ainda persiste. Na prática, a Fazenda Brasil Verde se utilizou de um expediente visando o lucro em detrimento da dignidade de seus contratados. Ela passou por 12 fiscalizações do Ministério do Trabalho, e em todas foram encontradas irregularidades, que, em alguns casos, levaram ao resgate dos trabalhadores. Eram casos de trabalhadores que dormiam em galpões, sem eletricidade, camas ou armários. A alimentação era insuficiente, de péssima qualidade e o material de trabalhado eram descontados de seus "salários", virando uma dívida com os patrões, que os trabalhadores não podiam pagar, num círculo vicioso interminável. Nessas condições, vários ficavam doentes, sem receber atenção médica adequada.
Por muitos anos, o Estado Brasileiro esteve ciente dos problemas, mas nunca condenou ninguém, nem foi capaz de prevenir outras violações. A Fazenda Brasil Verde foi obrigada a pagar, no máximo, os valores rescisórios dos trabalhadores resgatados. Tratam-se de compensações irrisórias. Isso porque uma das características da escravidão contemporânea é que o trabalhador é visto como uma mercadoria descartável, a ser usada por curto período de tempo – três ou quatro meses –, e logo dispensado.
Na escravidão histórica do Brasil, o custo de conseguir um escravo negro era alto, fazendo com que ele fosse considerado um investimento a ser amortizado com o passar dos anos. Os 'novos' escravocratas não precisam investir muito para conseguir mão de obra. Basta o boca a boca em uma cidade pobre como Barras, com o anúncio de uma "oportunidade de emprego", e vários trabalhadores farão fila para segui-los.Todos compartilhando as mesmas características: homens entre 15 e 40 anos de idade, em sua maioria negros ou pardos, oriundos dos estados mais pobres do país e sem qualificação.
Essa realidade é seguida de perto pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que juntamente com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), identificou na repetição das violações na Fazenda Brasil Verde uma chance de desmascarar essa cultura que ainda persiste no Brasil. As entidades levaram dois anos levantando documentos e procurando os trabalhadores prejudicados. Muitos que sofreram as violações não puderam ser encontrados. O caso foi levado para a Comissão em 1998. O Estado Brasileiro tentou negociar e pressionou muito para que o caso não chegasse à CIDH. Não conseguiu.
Foi a ausência de efetividade na aplicação da lei para proteger os direitos dos trabalhadores, punir os responsáveis e reparar os danos, que fez com que o caso fosse aceito na CIDH em 2015. Uma vez na Corte, o Estado Brasileiro se tornou réu. Isso porque o sistema de direitos humanos foi criado para punir abusos de Estados contra seus cidadãos. Apesar da legislação internacional reconhecer que a Fazenda, mesmo sendo uma entidade jurídica, é capaz de violar os direitos humanos, ela não pode ser julgada em âmbito internacional. Está em discussão na Organização das Nações Unidas um tratado sobre empresas e direitos humanos que pode mudar esse cenário e tornar mais difícil que as empresas ficarem impunes.

Relatos de uma vida de escravo

Luis Doca fez parte da última turma resgatada, em 2000. Sua narrativa por vezes parece saída de um livro de história do século XIX. Após serem aliciados pelo "gato", um capataz da fazenda, eles viajaram para o Pará de ônibus, apenas com a promessa do que viriam a receber. Uma vez na fazenda, os trabalhadores não têm a opção de desistir ou até mesmo abandonar o emprego, como em uma contratação regular. Assim como outros trabalhadores, Luis Doca explica em seus relatos, que para sair da fazenda é só fugindo, um ato de resistência comum à escravidão histórica. Assim como no passado, a pena pela fuga é a ameaça de tortura ou morte, explica.
Francisco das Chagas Diogo, 70, outro trabalhador que foi resgatado na Fazenda Brasil Verde, contou que a promessa do gato era que, após 15 dias na fazenda, ele voltaria para Barras levando um dinheiro para as famílias. Mas isso não aconteceu. Eles foram deixados no meio da floresta, em situação precária. O trabalho começava antes de amanhecer e ia até o cair da noite. Sem descanso, ou eram chamados de preguiçosos. Para comer um pouco melhor, tinham que matar capivaras. E para ele, fugir não era opção. "Lá tinha muito pistoleiro, o sujeito que fugisse, iria morrer. Aí, tinha que aguentar", conta Chagas Diogo.
Dois trabalhadores não aguentaram e fugiram em busca de ajuda. Foram três dias em meio da mata até conseguir chegar a alguém que os levasse até a polícia mais perto. Eles voltaram à fazenda com os fiscais do Ministério do Trabalho. Só assim, os trabalhadores puderam escolher deixar o local. O relatório da fiscalização mostrou os detalhes de como eles viviam em situação degradante. "A gente comia nos capacetes [de construção]. Se você não tivesse um capacete tinha que esperar os outros comerem, para usar no capacete de alguém", conta Luis Doca.

O custo de ser conivente com a escravidão

A Corte reconheceu na sentença que o Brasil violou direitos estabelecidos em vários artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos, como a proibição da escravidão e servidão; garantia a integridade física, psíquica e moral da pessoa; e direito à liberdade pessoal.
E apesar de a dignidade humana não ter preço, a conivência do Estado com a escravização de trabalhadores em pleno regime democrático tem seu custo. A CIDH calculou um valor de reparação inédito. Cada um dos 85 trabalhadores submetidos ao trabalho escravo, que foram resgatados durante a fiscalização na fazenda em 15 de março de 2000, vão receber como reparação 40.000 dólares (cerca de 120.000 reais). Outros 43 trabalhadores resgatados durante uma fiscalização em 23 de abril de 1997 receberão 30.000 dólares (cerca de 90.000 reais). É pouco, se considerado o sofrimento e aflições que os trabalhadores passaram na condição análoga à de escravo.
“Eu tinha esperança de ganhar algo, mas era mais um sonho”, afirma Luis Doca. O trabalhador tem planos para o dinheiro. “Já matutei um bocado de coisa, tenho um terreno e quero crescê-lo, ter uma sementinha de gado. Arrumar minha casa, puxar energia para a casinha do terreno. Pagar minhas dívidas. E enquanto esses braços aqui e os da mulher tiverem forças, vamos continuar trabalhando.” Chagas Diogo também vai continuar trabalhando. Seu sonho é comprar um pedaço de terra, e deixar de ser rendeiro. “Quero garantir emprego para meus filhos”, conta.

Os Pets podem mudar o direito que conhecemos ...

Gostei muito dessa matéria no El Pais. Além de curiosidade do tema, a matéria ajuda a entender o tratamento que o pets vem recebendo em decisões judiciais, a exemplo dos divórcios em que os casais possuem pets.

Vale a leitura







Meu bicho manda mais que eu

A febre por animais de estimação se espalha pelo planeta. A indústria faturou no ano passado mais de 350 bilhões de reais

A febre por animais de estimação se espalha pelo planeta. Movimenta uma indústria que no ano passado faturou mais de 350 bilhões de reais só nos Estados Unidos, Europa e o Brasil. O setor é um termômetro da economia global. E um reflexo dos dilemas e excessos de sociedades cada vez mais urbanas e ensimesmadas. Um terço dos espanhóis acha seu cão ou gato mais importante que os seus amigos. A bichomania motiva um debate sobre as relações entre os humanos e outras espécies.

1. É um setor que não para de crescer

Da alimentação aos serviços de spa, barbearia, massagem e manicure… Os animais de estimação movimentam um grande negócio.
Por Sara Cuesta
Mar Ribé, desenhista gráfica espanhola de 35 anos, se dirige ao altar. Usa um vestido rosado e caminha de braço dado com seu pai, Joan. Na mão esquerda, ele segura pela correia uma pequena cocker com um vestido idêntico ao da noiva. A mesma cor, os mesmos tecidos, o mesmo desenho. Ribé sempre sonhou que, no dia do seu casamento, sua cadela Sheera levasse as alianças. Quem a conhece bem sabe disso. Mas a cena supera todas as expectativas. “O pessoal alucinou. Apontaram as câmeras e celulares para o chão para fotografar a Sheera em vez de mim!”, recorda Ribé enquanto mostra o álbum do casamento, que aconteceu em setembro.
“Já em tempos imemoriais, a aristocracia tratava com atenção os seus animais de estimação”, diz o psicólogo Stanley Coren, professor da Universidade da Colúmbia Britânica em Vancouver (Canadá) e especialista em comportamento animal. “Se levarmos em conta a tendência a tratar as mascotes como filhos, se entende por que nas atuais sociedades desenvolvidas se gasta cada vez mais dinheiro em produtos e serviços para mimá-las”.
Tiram-se as medidas de ‘Eddie’. Um cliente habitual para o qual se fará um agasalho Felipe Hernández
Na verdade, a devoção pelas mascotes já não é mais só coisa de ricos. A explosão da indústria dos animais de estimação se tornou, de fato, um indicador do crescimento das classes médias no mundo, em particular no Brasil e Ásia. Só em ração, o setor movimenta mais de 185 bilhões de reais por ano.
O vestido de Sheera para acompanhar Mar Ribé ao altar custou 95 euros (346 reais) e foi desenhado sob medida na Caninetto, uma alfaiataria para bichos em Barcelona. Faz três anos que Edgard Gil e seu marido, Haritz Aramendi, montaram sua pequena loja-ateliê. Dezenas de diminutos casacos e camisetas coloridos pendem das suas araras. Mar Ribé e seu então noivo, Germán Tello, percorreram quatro vezes os 100 quilômetros que os separam do estabelecimento para fazer as provas do vestido de Sheera. “Minha mãe me dizia que estava mais preocupada com o traje dela que com o meu”, conta Ribé. “E, claro, sempre que íamos o Germán tinha que ficar fora da loja. Porque se visse o vestido da Sheera saberia como era o meu.”
Ribé viaja habitualmente a Nova York a trabalho e recorda que lá celebrações como a sua são comuns. Os Estados Unidos são o país pioneiro no desenvolvimento de novos serviços para animais de estimação, e também seu principal mercado. O setor faturou em 2015 o equivalente a 204 bilhões de reais, o dobro da cifra de 10 anos antes, segundo a Associação Americana de Produtos para Mascotes. A Europa vem bem atrás, com um faturamento de 109 bilhões e um crescimento anual de 1,8%, de acordo com dados da Federação Europeia da Indústria de Comida para Mascotes (ver gráfico).
A cocker Sheera com o vestido usado no casamento de sua dona, no qual portou as alianças. Ambas estavam com trajes combinando Felipe Hernández
A alfaiataria do Gil e Aramendi nasceu impulsionada por essa demanda. “Sabíamos que o setor não parava de crescer”, contam. Os dois primeiros anos foram duros, mas em 2015 embolsaram um lucro de 60.000 euros (218.000 reais). E crescendo. “Nossa capacidade de evoluir não depende de que o setor cresça na Espanha, e sim de que cresça internacionalmente”, diz o casal, que acaba de fechar um acordo para comercializar sua grife em Nova York. Em longo prazo, seus olhos estão voltados para a América Latina, onde no ano passado o setor faturou cerca de 30 bilhões de reais, mantendo um crescimento impressionante: entre 11% e 13% por ano, sobretudo no México, Brasil e Argentina, segundo dados do Euromonitor.
Tal crescimento exponencial também conquistou o setor de luxo, que se somou ao boom dos animais de estimação. Grandes firmas da moda, como Louis Vuitton e Gucci, têm seus próprios modelos de bolsas para transportar bichinhos. Adolfo Domínguez criou uma linha de roupa canina, e a Swarovski conta com uma gama de colares e joias. Em 2015, os acessórios específicos geraram mais de 1,6 bilhão de reais em países como o Japão e mais de 23,6 bilhões na Europa. “As pessoas decidiram que suas necessidades são as dos seus animais e, nesse sentido, talvez pudéssemos falar de um trato antropomórfico”, observa Miguel Ibáñez, professor de etologia e bem-estar animal na Universidade Complutense de Madri. Em grandes cidades como Los Angeles, Tóquio e Dubai, proliferam hotéis e resorts de luxo para uso e desfrute de animais. Muitos incluem tratamentos exclusivos como manicure e spa. Em 2015, esse mercado de alojamentos e serviços faturou mais de 18 bilhões de reais nos EUA.
'Tibet', um cão da raça shi tzu Felipe Hernández
Nicolás Herrero tem um salão de tosa com spa no bairro madrilenho de Malasaña. Numa terça-feira pela manhã, atende um de seus clientes habituais. Chama-se Tíbet e é um pequeno shih tzu com dermatite alérgica, que é levado lá semanalmente para receber um banho com ozônio que hidrata sua pele. “Atendemos entre 80 e 100 cães por mês”, diz Herrero. “A maioria vem ao salão de tosa, embora cada vez mais clientes solicitem o spa”. Tíbet levanta a cabeça em meio à espuma da banheira prateada e permanece imóvel durante os 25 minutos de tratamento. A seguir: secar, cortar e pentear. O serviço completo custa 45 euros (164 reais). Ou mais, segundo o tamanho do animal.
‘Tibet’ tem dermatite alérgica. As sessões de spa com ozônio hidratam sua pele Felipe Hernández
Perto deste spa há uma rotisseria para bichos, a Miguitas. Os brownies de fígado de frango e as tortas de salmão começam a sair do forno durante a manhã de uma quinta-feira. Enquanto sua proprietária, Charo Hernández, abre a loja, um labrador negro puxa ansioso pela correia e arrasta a sua proprietária até o interior. “Isso acontece constantemente”, ri Hernández. O segredo das suas iguarias? São elaboradas com produtos naturais. “O animal as saboreia e são um complemento nutricional para as rações processadas, que têm muitas carências.” A alimentação é o setor que mais dinheiro movimenta nesse setor. Só na Espanha, o equivalente a 3,22 bilhões de reais por ano, segundo a consultoria Nielsen. Sonia Serra, estilista de 27 anos, compra menus especiais para seu galgo Buppy, que sofre de alergias alimentares. “Custa quatro vezes mais que uma ração de marca branca, mas compensa pelo que economizo em veterinários.” Ela e seu cônjuge destinam o equivalente a 5.500 reais por ano para manter o seu cão. A cifra praticamente dobra os 2.976 reais calculados pelo Ministério de Agricultura, e se aproxima cada vez mais da média norte-americana (7.286 reais).
O valor inclui atividades de lazer que acabam virando tendência, como o doga: ioga com cães. Surgiu há cinco anos em Nova York, pelas mãos da professora Suzi Teitelman, que reinterpretou a prática para incluir sua mascote. Seus vídeos online difundiram a doga pelo mundo todo. Em janeiro, Hong Kong bateu o recorde do Guinness com a aula mais numerosa da história (270 duplas dono-bicho). A educadora canina Patricia Guerrero importou a modalidade para um centro de ioga de Barcelona. “O objetivo é encontrar esse momento de conexão entre a pessoa e seu cão”, diz ela. Ao final da sessão, dono e animal permanecem abraçados em um aparente estado de relaxamento.
Biscoitos em uma confeitaria para pets em Madrí (Espanha) Felipe Hernández
Miguel Ibáñez, da Universidade Complutense, insiste que, apesar da boa intenção, essas novas atividades e serviços não deixam de ser “uma interpretação humana”. Algo que se evidencia também nos rituais pela morte do animal. Com mais de 284 milhões de mascotes na Europa, os crematórios abriram um nicho nesse mercado. “A Espanha começou um pouco mais tarde que seus vizinhos, mas agora abre um a cada semana”, diz Ruud van Beurden, gerente da Funeral Products Spain. A Cremascota surgiu em 2011 em Alcorcón (Madri). Numa tarde de sexta-feira, Raquel e Sergio Lázaro, irmãos e sócios do negócio, atendem os visitantes. Um de seus serviços-estrela são os velórios (40% dos clientes pedem). “Duram 30 minutos”, diz Sergio Lázaro, que trata os corpos. “Lavo, seco, penteio e o coloco no mostrador, como se estivesse dormindo.” Do outro lado do vidro, a família se despede. Pelo crematório passam entre 100 e 150 animais por mês. O preço oscila entre os 856 e 1.239 reais. Com um extra, é possível incluir lembrancinhas.
Outros preferem o enterro. A criação de cemitérios para mascotes remonta ao século XIX em cidades como Nova York (1896) e Paris (1899). Na Espanha, o primeiro só foi fundado em 1983. Num enorme pinheiral de Arganda del Rey (Madri), um letreiro anuncia: O Último Parque. Nos fins de semana, abre para as visitas. Entre os 33.000 metros quadrados de tumbas, um casal de aposentados, Isabel e Nicolás, retira as folhas secas que cobrem o jazigo de seu Tekkel. “Morreu há cinco anos. Ficou 16 conosco.” Sobre a lápide há um poema plastificado escrito por sua filha. A alguns metros dali, María José cola com celofane duas rosas frescas sobre a lápide da sua cachorrinha, como faz todos os sábados desde que ela morreu, há 21 meses. Os jazigos custam de 730 a 21.860 reais, em função do tamanho, localização e materiais usados. A taxa anual de manutenção é de 218 reais. Quando este recinto foi inaugurado, várias Prefeituras acharam que seus fundadores eram loucos. Hoje, são os Governos locais e regionais que propõem a criação destes cemitérios. Nos Estados Unidos, vão além. Em outubro, o Estado de Nova York aprovou uma norma que permite que animais sejam enterrados junto com seus donos. Outro sonho de Mar Ribé. “Guardo em casa as urnas com as cinzas de todos os meus animais. Espero que enterrem minhas cinzas com as deles.”

2. O debate. Sentimentos animais

Eles já são membros da família. Nas áreas urbanas, compartilhamos cada vez mais espaços com eles. Até onde podem chegar os seus direitos?
O filósofo Fernando Savater afirma que o pet acaba sendo um “reflexo do narcisismo do seu dono”. Sua humanização também não é um fenômeno recente, pois vem acontecendo ao longo de séculos. A novidade é que um terço dos espanhóis já considera seu cachorro ou seu gato como sendo mais importante do que seus amigos, segundo a Fundação Affinity, que defende o lugar dos animais na sociedade.
De onde vem essa febre pelas mascotes? O psicólogo norte-americano Harold Herzog, prestigiado pesquisador sobre o tema, a explica da seguinte forma: “Estamos cada vez mais sozinhos. As pessoas se casam tarde ou não o fazem, têm poucos filhos ou vivem por mais tempo. Essa solidão é maior nas cidades, distantes das comunidades rurais, onde as pessoas conhecem os seus vizinhos e vivem cercadas pela família”. Essa perda de contato com o campo e o surgimento de uma fauna urbana, composta principalmente por mamíferos domesticados, criaram um imaginário segundo o qual “a natureza é boa e pacífica”, segundo o filósofo Francis Wolff.
Os desenhos animados, o cinema e a publicidade potencializaram essa imagem. “Em um mundo comandado pelo sentimentalismo, acabamos transformando as mascotes em uma espécie de deuses bondosos”, acrescenta Savater. “Não esqueçamos que um animal nunca trai você, enquanto um amigo pode fazê-lo. Tampouco o julga. Para ele tanto faz que você seja uma faxineira ou o presidente da República”, afirma a professora Blanca Lozano em sua sala na Faculdade de Sociologia da Universidade Complutense de Madri, decorada com pôsteres de cachorros. Mas o akmor pelos animais, levado a situações extremas, pode comprometer o seu próprio bem-estar como espécie.
Fundadores da alfaiataria Caninetto com suas cadelas Felipe Hernández
“Temos de estar conscientes de que podemos lhe causar prejuízos físicos e psicológicos. Pouco tempo atrás, uma senhora me disse que o seu cachorro não gostava de cheiro de comida cozida”, comenta Carmen Castro, psicóloga especialista em comportamento canino. “Quando uma pessoa começa a dizer coisas desse tipo, é preciso acender o sinal amarelo”. Ela não faz os seus pacientes se sentarem em uma poltrona de couro novinha em folha. Suas consultas são dadas em um terreno baldio no subúrbio de Getafe, onde cerca de vinte cachorros se divertem. Uma das principais doenças de seus pacientes é a ansiedade decorrente da separação. “Estamos tão dependentes deles que quando os deixamos sozinhos eles passam mal”. Na entrada do local, um cartaz branco com letras azuis traz escrito o nome Hydra, associação de apoio e terapia com animais, na qual Castro trabalha ao lado de uma etóloga e de uma socióloga.
Em uma manhã de outono, Isabel María Pérez, estudante de contabilidade e finanças, comparece à Hydra para pegar seu cachorro. Estão separados há 15 dias, por determinação médica. A jovem, de 21 anos, não aguentava mais o comportamento agressivo de Darko. “Como todo mundo, eu humanizei o cão. Nós o tratávamos como se ele fosse um rei: comia na mesa a com a gente, dormia debaixo da nossa cama. Quando não conseguia ter o que queria, começava a latir. E assustava as pessoas”. Segundo a Fundação Affinity, os problemas de comportamento se tornaram um dos motivos mais recorrentes para o abandono de animais na Espanha. Somente no ano passado, as sociedades protetoras recolheram quase 138.000 cães e gatos. “É elementar entender as necessidades de cada espécie”, lembra Alex Kacelnik, professor de ecologia do comportamento animal da Universidade de Oxford. Ainda mais quando se trata de um exemplar exótico. “As pessoas já estão vivendo até com aranhas. É curioso, porque quanto mais distante o animal for da nossa escala biológica, maior será a dificuldade para se relacionar com ele”, argumenta Miguel Delibes de Castro, ex-diretor da Estação Biológica de Doñana. A moda de passear com um porco vietnamita como o de George Clooney pode simbolizar um status social. “O animal é visto como uma coisa sua, uma propriedade. E, como qualquer outro bem, pode se tornar um sinal de riqueza”, afirma a antropóloga mexicana Ana Cristina Ramírez.
Em países como os Estados Unidos, há um número de mascotes (305 milhões) próximo do número de habitantes (324 milhões). Cerca de 75 milhões de lares europeus possuem animais de estimação. Na América Latina, o boom apenas começou: somente Brasil, México, Argentina e Chile contabilizam, juntos, 200 milhões, segundo a consultoria Euromonitor (ver gráfico). “Na maioria das sociedades ocidentais, nossas necessidades básicas estão garantidas. As pessoas começam a lutar por outras causas, como pode ser a defesa dos animais”, observa Jesús Zamora Bonilla, professor de filosofia do direito da UNED.
Os especialistas em direito animal defendem, no entanto, que a própria ciência é que constatou que os animais são seres sensíveis, razão pela qual é necessário, sim, estabelecer normas mais adequadas às suas necessidades. Acordos como o de Lisboa ou o próprio Código Cicil da França já os reconhecem como “seres vivos sensíveis à dor”. A Espanha ainda não deu esse passo, mas endureceu as penas por maus tratos na última reforma de seu Código Penal. O vertiginoso desenvolvimento dessa área judicial fez surgirem tribunais que já deram habeas corpus (instrumento jurídico que reconhece o direito de não ser privado de liberdade sem que haja uma acusação formal) e vários macacos. A última que obteve esse direito humano foi Cecilia, um chimpanzé de um zoológico da Argentina. “ O conhecimento científico a respeito da proximidade genética dos animais diminuiu a distância existente entre eles e nós”, afirma Pablo de Lora, professor de filosofia do direito da Universidade Autônoma de Madri. Essa aproximação faz com que seja crescente o número de pessoas que defendem que não é ético comer produtos derivados dos animais, como mostra o grande aumento da opção vegana.
Fundadores da alfaiataria Caninetto com suas cadelas. Elas experimentam as suas criações, para ver se são confortáveis Felipe Hernández
Laia Bollo, secretária do Partido Animalista contra os Maus Tratos a Animais (PACMA), responde à mensagem de uma senhora que lhe pergunta como fazer uma denúncia anônima de exploração animal. “É impossível. Você precisa se identificar”, diz ela, com Gertrudis, sua cadelinha da raça shih tzu, apoiada nos seus pés. Sua mesa está localizada na recepção da sede do partido animalista, um apartamento de 65 metros quadrados no número 11 da rua de Preciados, no centro de Madri. Na entrada, um enorme cartaz exibe o logo do partido, ilustrado com a silhueta de um touro e um passarinho verde. “Você talvez não se recorde, mas anos atrás o distintivo trazia um touro ensanguentado. Decidimos alterá-lo, para transmitir uma imagem mais suave”, conta Laura Duarte, que cuida da comunicação desse partido fundado em 2003 e que foi ganhando espaço à medida que crescia o sentimento animalista. Se nas eleições gerais de 2008 eles obtiveram perto de 45.000 votos, em 2016 esse total ultrapassou 286.000. Seus pontos fortes são as grandes cidades, onde reina a mascotemania e sua presidente, Silvia Barquero observa que ainda há muito por fazer: habilitar mais zonas de estacionamento canino, conscientizar as pessoas quanto à adoção de animais e não limitar o horário de acesso ao metrô para os cachorros. Os Governos locais enfrentam o desafio de conciliar os anseios daqueles que querem compartilhar os espaços públicos com as mascotes e os que não querem nem sequer ouvir falar nessa possibilidade, cansados daquilo que consideram ser uma imposição cada vez mais invasiva.
Em capitais como Berlim, onde habitam raposas, guaxinins e um sem-número de espécies nos espaços verdes, a Prefeitura já conta com um “oficial da fauna selvagem”. Derk Ehlert exerce este cargo com diplomacia. Sua tarefa é fazer a mediação entre moradores humanos e... não humanos. “Recebemos muitas queixas por causa do barulho das raposas ou pelos danos causados nos jardins, mas, em geral, a cidade é muito tolerante”, explica Ehlert, de Berlim. Os ruídos dos cachorros nas residências e, sobretudo, a praga dos excrementos caninos estão entre as coisas que mais irritam os urbanistas espanhóis. Um problema que as autoridades parecem ter renunciado a enfrentar. A Polícia Municipal de Madri aplicou em 2015 apenas 23 multas, que oscilam entre 750 e 1.500 euros (2.700 e 5.400 reais). Em 2016 o total até agora é de 40. A justificativa para tão escasso número é a dificuldade de apanhar os infratores em flagrante. Estas cifras se incluem entre os milhares de denúncias que a polícia madrilena contabiliza por infrações cometidas com o animal doméstico. No ano passado foram 3.071. O delito mais frequente é o de maltrato.
Cemitério de animais, inaugurado em Madri em 1983 Felipe Hernández
A capital da Espanha se propôs seguir o exemplo de outras grandes cidades europeias e levar a natureza ao asfalto. Uma das medidas de seu ambicioso plano de biodiversidade será utilizar um terreno da Casa de Campo para a pastagem de ovelhas, assim não será mais necessário capinar a área e haverá uma aproximação dos animais com a cidade. Um fato absurdo para os críticos, e que Silvia Barquero, presidenta da PACMA, apoia com reservas. “Sobre acabar com a tauromaquia pouco falam”, observa. O último dos partidos a se unir ao filão animalista foi o Cidadãos, que pediu ao Governo central que modificasse o regime jurídico dos animais domésticos para que deixem de ser considerados “bens patrimoniais”. Uma medida que a PACMA reivindica há anos para pôr fim aos maus-tratos.
Por outro lado, o radicalismo de algumas campanhas em prol dos animais impede às vezes um debate tranquilo para abordar esta complexa relação entre humanos e outras espécies. Negar esta nova realidade tampouco ajuda. Modelar a mascote à nossa imagem e semelhança, menos ainda: “Se humanizar o animal quer dizer colocar lacinhos no pelo, pouco contribuímos para seu bem-estar”, diz Peter Singer, pai do ativismo em prol dos animais. Esta luta pode então ser relacionada com o progresso do humanismo? O filósofo francês Francis Wolff alerta: “Nunca fomos tão sensíveis ao sofrimento animal e tão indiferentes ao sofrimento humano”.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Escuela de Verano 2017

Escuela de Verano de 2017, divulgando ...


http://cedpal.uni-goettingen.de/index.php/ensenanza/escuela-de-verano/366-escuela-de-verano-2017

Deleção premiada e seus desafios ...



Um dos temas mais interessantes no direito penal neste momento ... artigo da Conjur:

Como funciona o mercado oculto da delação premiada

Por 


Tenho insistido em buscar compreender a lógica do dispositivo do processo penal via delação premiada e Teoria dos Jogos[1]. As tentativas de aproximação com as coordenadas que aprendemos sobre o processo penal continental precisam ser atualizadas. Existem bons textos[2] teóricos que se valem da experiência americana, especialmente em face do pano de fundo — filosófico — do pragmatismo (aqui).
A proposta é a de metaforizar a delação como um mercado de compra e venda de informação (provas). De um lado, existe o monopólio do comprador — Estado, via Ministério Público — e, do outro, possíveis vendedores de informação (colaboradores/delatores). Havendo interesse recíproco na compra e venda de informação compartilhada, resta a fixação de seu preço. O comprador está interessado em obter informações capazes de imputar responsabilidade penal ao delator e também a terceiros, aceitando, com isso reduzir o preço penal (pena, regime etc.). Os critérios para fixação do preço são flutuantes e dependem da qualidade, quantidade e credibilidade do material vendido, enfim, das recompensas dos negociadores.
A questão a ser sublinhada é a da existência de modos ocultos de funcionamento. Não se trata de ilícitos, mas de blefes, jogadas arriscadas e cartadas do tipo ultimato: é pegar ou largar.
O filme em cartaz nos cinemas, 13 th, documentário da cineasta Ava DuVernay (veja trailer oficial aqui), mostra que o encarceramento em massa americano a partir da década de 1970 teve como alavanca o plea bargain, ou seja, a Justiça negociada, pela qual há um esforço da acusação para que o suspeito confesse a culpa e renuncie ao “direito ao processo”. Perceba-se que o processo é tido como direito disponível e, portanto, renunciável. Difere, assim, da tradição que entende a culpa como a decorrente de uma sentença judicial, excluindo, inclusive, a possibilidade de se condenar alguém exclusivamente com base na confissão (CPP, artigo 197). No novo modelo — que coexiste com o modelo continental —, negocia-se quase tudo. E a proposta é feita no “pegar ou largar”: se o suspeito aceitar a culpa — mesmo sendo inocente —, recebe uma pena pequena e com benefícios; se quiser o processo, não terá nenhum benefício e servirá de exemplo para que os futuros sejam “incentivados” a aceitar a culpa, mesmo sendo inocentes. Aliás, na semana anterior, narrei o caso de Peter Heidegger, que ficou preso 2.865 dias mesmo sendo inocente (aqui).
O dispositivo, em regra, atende ao seguinte cronograma:
1) reunião preliminar de intenção sobre a apresentação do produto informação (prova a se delatar);
2) assinatura de Termo de Confidencialidade, em que as partes se comprometem a não divulgar, nem usar, o material disponibilizado sem a negociação final;
3) formulação dos “anexos”, papel de protagonismo do colaborador/delator e advogados. A metodologia dos “anexos” autoriza o fatiamento da informação com ou sem valor de troca;
4) reunião de apresentação dos “anexos”, com indicação do conteúdo da prova, sem necessariamente todos os documentos comprobatórios;
5) reunião de apresentação dos benefícios — valor de compra — das mercadorias probatórias, a partir dos anexos;
6) reunião de debate e negociação sobre o conteúdo da proposta: estabelecimento do preço;
7) assinatura do acordo, com detalhamento do produto a ser entregue e as obrigações recíprocas;
8) depoimentos prévios gravados em áudio e vídeo, conduzidos pelo Ministério Público e sob supervisão dos defensores, com os delatores/colaboradores;
9) apresentação da proposta de homologação ao juízo competente, devidamente fixado o conteúdo das obrigações recíprocas;
10) homologação judicial do “contrato de compra e venda de informações”, em juízo;
11) possível recall com a inserção, exclusão de informações e novas cláusulas.
Entretanto, para além da legalidade, a metodologia utilizada difere em cada comprador, dada a ausência de regramento legal do “modo” como a negociação deve acontecer. Prevalece o jogo da negociação, do mercado flutuante e da capacidade de compra e venda de informações probatórias. Trata-se daquilo que o economista Alvin E. Roth[3] denomina de mercado de matching, em que haja uma “combinação”, uma confluência de interesses. É um mercado novo no ambiente processual penal, cujos desafios para compreensão devem ser articulados.
Nas colunas seguintes, falarei da metodologia da proposta-relâmpago, dos blefes, trunfos e jogos ocultos, bem assim da venda do silêncio e da perda do preço de face da informação. Até a próxima.

domingo, 9 de outubro de 2016

O livro em papel sobrevive ...

Quero ler em papel

Livro impresso sobrevive em plena era digital, apesar dos maus presságios motivados pelo surgimento do ‘e-book’, em 2007

A elegia fúnebre para o papel terá que esperar. Os maus presságios sobre a morte iminente do livro impresso, esse veículo de ideias que mudou a história da humanidade, o mais poderoso objeto do nosso tempo, conforme clamam alguns, não se cumpriram. O e-book não o enterra, pelo menos por enquanto. Persiste o cheiro de papel, de tinta, de cauda; o totem continua vivo, meio abalado, mas ainda se agita.
Por mais que a imprensa tradicional e os sites falemos do que é novidade, do que está por chegar, do último gadget tecnológico, as estatísticas estão aí, com toda a sua teimosia. E são bem claras, tanto na Espanha quanto nos Estados Unidos. Duas de cada três pessoas continuam lendo seus livros principalmente em papel.
O deslumbramento que os novos aparelhos eletrônicos de leitura produziram se estabilizou. Deixaram de ser moda e se tornaram, é verdade, um fato, um fenômeno que veio para ficar. A ameaça que muitos editores viam no e-book no começo deste século mudou de aspecto. Esconde-se dentro do celular. É a mudança de hábitos. Mas recordemos, antes de mais nada, como tudo começou.
O enterro antecipado do livro impresso ganhou forma na virada do século. “O livro está morto, longa vida ao livro”, proclamava em maio de 2006, ufanista, o guru Jeff Jarvis, apóstolo da revolução digital que atacava os livros por serem unidirecionais, por não abrirem portas, por não incluírem links, por serem longos demais. Palavras idênticas utilizava Jeff Gómez, divulgador da revolução do e-book, na capa de um livro que publicou em 2007: (“o impresso morreu: livros na nossa era digital”).
O entusiasmo digital já dominava àquela altura os altos executivos do setor, como Alberto Vitale, à frente da Random House no começo do século. No ano 2000, Vitale apregoava o fim do papel no 26º Congresso da União Internacional de Editores, conforme recorda um ilustre editor espanhol. O fantasma do livro eletrônico já pairava sobre aquele evento. A inquietação na entidade setorial era palpável.
O biênio 2007-2008 foi do Kindle e do Lehman Brothers, uma dobradinha letal para o setor editorial tradicional, que precipitou as visões apocalípticas, o clima de velório. As vendas começaram a cair sucessivamente, a ponto de reduzirem os lucros do produto em papel em 30% com relação a antes da crise. O livro eletrônico adquiria ares de verdugo.
Mas a narrativa do alardeado e supostamente inapelável desaparecimento do livro impresso apresenta fissuras. E, embora não se possa falar de uma grande mudança de tendência, é hora de arquear as sobrancelhas. Por mais ultrapassado, old school e voluntarista que esta colocação pareça.
As cifras da Nielsen BookScan sobre os Estados Unidos antecipam possíveis cenários futuros no resto do mundo. Em 2015 foram vendidos 571 milhões de livros impressos, 17 milhões a mais do que no ano anterior. E, segundo a consultoria Forrester Research, no ano passado foram vendidos nos EUA 12 milhões de e-books, contra 20 milhões em 2011.
O prognóstico de que o livro digital engoliria metade do mercado não se cumpriu. Domina 25% das vendas – isso nos Estados Unidos. Na Espanha, o livro digital, segundo os dados da Federação de Grêmios de Editores, representa apenas 5,1% do faturamento total do setor.
A cifra de negócio das editorias espanholas cresceu 2,8% em 2015, chegando a 2,26 bilhões de euros (8,15 bilhões de reais) e confirmando o tímido crescimento apontado em 2014. A venda de volumes em livrarias tradicionais cresceu 5,6%.
Ler é sexy, proclama uma revista na sua capa. Novas livrarias independentes, muitas delas do tipo boutique, e bares abrem suas portas. Editam-se livros que são um canto ao papel, como Paper. Paging Through History (“papel – folheando a história”, Norton, 2016), onde Mark Kurlansky afirma que o papel nos guiará no decorrer de todo o século XXI (e recorda que ele chegou à Europa cristã em meados do século XII, pela Espanha). Ou um canto ao próprio livro, como The Book: A Cover-to-Cover Exploration of the Most Powerful Object of Our Time (“o livro: uma exploração capa a capa do objeto mais poderoso do nosso tempo”), lançado em agosto deste ano, no qual Keith Houston homenageia este totem estrutural da cultura.
Deixando de lado todo o hype e o impulso (ou o respiro na queda), parece que o papel resiste ao vendaval digital. Como isso é possível em meio a tudo o que está acontecendo?
Os editores de livros, que neste mês têm dois grandes eventos (a feira Liber, de 12 a 14 de outubro em Barcelona, e a Feira de Frankfurt, a mais importante do mundo, de 19 a 23), afirmam que a recuperação das cifras se deve ao fato de a crise econômica ser menos aguda agora do eu que 2008. E, claro, há a questão do papel.
A retenção do conteúdo é muito melhor quando se lê um livro impresso, apontam alguns cientistas (outros não são tão taxativos). O artigo (“por que o cérebro prefere o papel”), publicado pela em outubro de 2013, relata que as telas (tablets, computadores, celulares) podem inibir a total compreensão do texto, pois distraem o leitor. A pesquisadora Maryanne Wolf, da Universidade Tufts, em Massachusetts, sustenta que o papel apresenta grandes vantagens e propicia uma maior memória visual.
Entre estudantes universitários, 92% se concentram melhor lendo em papel. É o que concluiu, depois de entrevistar 300 alunos de universidades dos Estados Unidos, Japão, Alemanha e Eslováquia, Naomi S. Baron, professora de linguagem da Universidade Americana, que apresentou seu trabalho no livro Words on Screen: The Fate of Reading in a Digital World (“palavras na tela: o destino da leitura no mundo digital”), publicado pela Oxford University Press em 2015. Álvaro Bilbao, neuropsicólogo, autor de Cuidar el Cerebro (“cuidar do cérebro”), argumenta que a possibilidade de tocar, cheirar e sentir o peso do livro e a sensação de avançar à medida que se viram as páginas podem ser mais prazerosas. “Essas coisas que despertam nossos sentidos ativam o hemisfério direito do cérebro, que está mais relacionado com o mundo das emoções”.
O fetichismo, a beleza do objeto, esse prazer tão datado de percorrer a livraria, as livrarias. A lista de motivos que levam o papel a continuar vigente cresce à medida que se conversa mais com leitores, editores, escritores. O prazer de colecionar, as notas à margem, as flores secas ou os cartões de embarque servindo como marcadores de páginas, sua utilidade estética na sala de casa, a dedicatória que trazem quando são um presente...
A resistência do papel também se explica, talvez, por estarmos apenas no começo da revolução digital. “O ritmo das mudanças tecnológicas sempre é mais lento do que as pessoas tendem a acreditar”, afirma Michael Bashkar, editor da área digital da Profile Books e autor de The Content Machine (“a máquina do conteúdo”), livro no qual descreve um futuro em que os intermediários desaparecem e as tecnologias conectam os autores diretamente aos leitores. “Não acredito que vejamos o fim dos livros impressos”, acrescenta. “São objetos materiais, desejáveis, estarão sempre aí. Sou viciado em livros, tanto impressos como eletrônicos.”
A televisão não matou o rádio. O papiro e o pergaminho coexistiram durante séculos no antigo mundo mediterrâneo. Ao final, tudo aponta para uma coexistência de formatos, para um ecossistema no qual o audiolivro agora irrompe com força. O papel aloja melhor o universo fechado prometido por um grande romance; o tablet (que pouco a pouco vai acuando o livro de bolso) é porta de entrada cada vez mais habitual para a literatura de gênero, romântica, erótica, para os autoeditados.
A ameaça para o livro impresso não é, portanto, como se pensava há dez anos, o livro eletrônico. Os concorrentes viajam no celular, e o problema é a mudança na nossa forma de vida.
Nos ônibus e no metrô, vemos pouca gente lendo um livro. O humano viaja com a cabeça baixa, olhando sua tela, visualizando as fotos pela enésima vez, compartilhando-as, comentando-as, trocando mensagens, interagindo. Assim se sente acompanhado, acolhido a cada instante, assim se vacina a golpes de teclado contra a (cedo ou tarde inescapável?) solidão.
Instagram, Twitter, Facebook. Essas plataformas é que vieram a ocupar o tempo livre (e o de trabalho). Uma das vítimas colaterais é o livro, o velho amigo. “As redes sociais são, de fato, um inimigo claro da leitura”, diz sem rodeios o editor Luis Solano, da Libros del Asteroide.
Vamos a toda pressa, de um lado para o outro. A leitura repousada e atenta casa cada vez menos com os novos ritmos. A complexidade de certo tipo de vida contemporânea, a do urbanita hiperconectado, a velocidade a que vivemos como consequência da agilização das comunicações, que multiplicam a vida social, a troca de ideias (e de bobagens?), entre muitas outras coisas, deixaram um espaço menor para o recolhimento que um livro exige. Mas esse velho objeto, coisas da vida, continua vivo.
Afinal de contas, como dizem que dizia Groucho Marx (e embora haja sérias dúvidas sobre a autoria da frase, ela sem dúvida exala o odor do seu charuto): “Fora o cachorro, o livro é o melhor amigo do homem. E dentro do cachorro é escuro demais para ler”.

domingo, 11 de setembro de 2016

Sem defesa ...

Como demonstra a matéria da Conjur, na maior democracia do planeta os réus está indefesos ...



DEFENSORIA FALIDA

Juiz nomeia promotor para defender réu indigente nos EUA

11 de setembro de 2016, 7h55
Por 
A Sexta Emenda da Constituição dos EUA é, seguramente, o dispositivo jurídico mais desrespeitado no país. Ele garante ao réu de ação criminal o direito a um advogado, além de um julgamento público e rápido. As Defensorias Públicas estão quebradas e as autoridades públicas não têm interesse e restabelecer o equilíbrio, para garantir a proteção constitucional aos réus pobres.
Esse é um quadro nacional. Em Louisiana, porém, a situação beira o deboche. Os juízes têm nomeado advogados de qualquer área, como advogados de Direito Tributário, Imobiliário, Seguros, de Família, um deles com especialização em adoção, entre outros, para defender réus em “casos negligenciados”. Porém, o fato mais inusitado, foi a nomeação de um promotor para defender um réu, porque o juiz não encontrava um advogado disponível para fazê-lo, segundo um estudo do Marshall Project, divulgado na segunda-feira (7/9), corroborado pelo The Guardian US.
Com necessidade de iniciar o julgamento de um homem acusado de violação de domicílio, dano à propriedade e intrusão, e sem encontrar um advogado disponível para cumprir a formalidade da lei, o juiz nomeou o promotor J. Keith Gates para defender o réu.
Gates trabalha meio expediente como promotor e tem aproveitado a oportunidade oferecida pela deficiência de defensores públicos no estado para se aventurar nesta área nas horas vagas. Ele reafirmou ao Marshall Project o que já havia dito ao juiz: na Promotoria, ele só se encarrega de casos pequenos; como defensor público, ele representa réus acusados de crimes sérios. E ele não acusa e defende ao mesmo tempo.
O juiz Jacque Derr lhe disse, segundo o promotor, que estava satisfeito com o arranjo. Nomeou o promotor para defender o homem e disse que, como ele "tem um advogado. Portanto, já podemos condená-lo”.
Houve um caso em Louisiana em que o juiz nomeou o advogado Ryan Goodwin, especializado em seguros, para representar um adolescente acusado de usar uma arma para roubar uma carteira e um telefone celular. A pena poderia ser de prisão perpétua.
“Tudo que sei de legislação criminal foi o que consegui aprender em duas classes que frequentei na faculdade de Direito sobre processo penal”, ele disse ao Marshall Project. “Eu não me escolheria para representar a mim mesmo em uma ação criminal”.
Ele pediu ao juiz para dispensá-lo, mas o juiz rejeitou o pedido. No final, ele fez um acordo de delação premiada com a Promotoria, para seu cliente testemunhar contra outro suspeito. O acordo rendeu uma pena a seu cliente de apenas cinco anos.
Desigualdade
A falência da Defensoria Pública nos EUA, que contrasta com a situação estável da Promotoria, se deve em grande medida ao desinteresse de governadores e parlamentares estaduais em garantir representação para réus indigentes. Isso porque prevalece a ideia de que lugar de criminoso é na cadeia — independentemente do fato de que um réu, se fosse representado por um advogado em julgamento, poderia não ser considerado um criminoso e, sim, inocente.

Em todo o país, a verba para todas as Defensorias Públicas estaduais e municipais soma US$ 5,3 bilhões, que representa apenas 2,5% da verba de US$ 200 bilhões destinada à justiça criminal por estados e municípios.
Nesse bolo não está Louisiana, onde a Defensoria Pública não tem verba orçamentária alguma. A receita da Defensoria Pública do estado vem, inteiramente, de multas de trânsito e de outras pequenas multas municipais. Em condados que não têm muito trânsito ou em meses que chove muito e a polícia dificilmente para carros, não há receita, apurou o Marshall Project. Após o furacão (Katrina) que atingiu parte de Louisiana, a defensoria ficou meses sem receita.
Uma das consequências do desastre financeiro das defensorias, que leva um defensor a ter, por exemplo, uma carga de trabalho de mais de 900 casos em alguns distritos de Louisiana, é a de que 95% dos casos criminais nos EUA não vão a julgamento. Acabam em acordos com a Promotoria, em que o réu confessa a culpa, mesmo que inocente, para evitar o julgamento, em troca de uma pena mais leve.
Em Louisianna, houve um caso que ganhou uma definição própria: “acordo em massa”. Um defensor público, atolado de processos, fez um acordo com a Promotoria para encerrar 50 casos, de uma vez só. Para discutir o acordo aos réus, ele dispensou a cada um o tempo máximo de 20 segundos. Todos foram para a cadeia, com penas supostamente menores. Uma grande parte dos 95% dos casos que terminam em acordo nos EUA se deve ao fato de os defensores públicos não terem condições para representar os réus como “sonha” a Constituição dos EUA.
Assim, não se cumprem as previsões da Sexta Emenda, porque, no final das contas, o réu não tem realmente direito a um advogado para representá-lo condignamente em um julgamento e porque tudo termina em acordo, sequer tem direito a um julgamento.
Torna-se letra morta todo o dispositivo que diz: “Em todas as ações criminais, o acusado deve desfrutar o direito a um julgamento público e rápido, por um júri imparcial do estado ou distrito onde o crime foi cometido, distrito que deve ser previamente confirmado por lei; o réu deve ser informado sobre a natureza e causa da acusação; pode confrontar as testemunhas contra ele; a ter um processo compulsório para obter testemunhas a seu favor e ter a assistência de um advogado em sua defesa”.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

Revista Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2016, 7h55

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Fim das armas de fogo ...

Os noticiários diários demonstram de forma tão clara que as armas de fogo tem que ser exterminadas. No entanto, mesmo em um país como os EUA os interesses corporativos são mais importantes do que a vida ...





Cinco policiais são mortos em Dallas durante protesto contra violência racial

Cinco policiais morreram e outros sete ficaram feridos na quinta-feira à noite pelos disparos de pelo menos um franco-atirador durante uma manifestação contra a violência policial em Dallas (Texas), nos Estados Unidos. A emboscada, com detalhes de inquietante sofisticação, ocorreu no final de um protesto, que reuniu umas 800 pessoas pelo centro da cidade, convocado por grupos ligados ao movimento Black Lives Matter (vidas negras importam, um movimento social contra o racismo e a violência policial nos EUA). Era a resposta à morte de dois homens negros em mãos da polícia num período de 48 horas. Dois civis também ficaram feridos pelas balas.

A manifestação transcorria com relativa calma até o início dos disparos, o que provocou pânico. O atirado foi identificado nesta sexta-feira como Micah X. Johnson, de 25 anos, se entrincheirou em uma instituição de formação profissionalizante, chamada El Centro College, onde morreu na explosão de um artefato enviado por um robô das forças de segurança, várias horas depois. O chefe da Polícia local, David Brown, confirmou a morte e afirmou que as autoridades tentaram negociar com ele. Segundo Brown, Johnson disse que estava “chateado com os brancos” e queria liquidar “policiais brancos”.
“Disse que estava chateado com o Black Lives Matter, chateado com os recentes tiroteios da polícia, chateado com os brancos, disse que queria matar brancos, disse que não estava ligado com nenhum grupo e que agiu sozinho”, declarou o chefe de Polícia.

Depois de uma noite nefasta, o centro de Dallas amanheceu tomado pelas forças de segurança. O tráfego estava bloqueado em uma dúzia de quadras do centro, com a polícia em estado de alerta e os helicópteros sobrevoando a cidade. O lugar da matança, o edifício do Bank of America, estava cercado de carros da polícia de Dallas. Este não foi apenas o evento mais trágico desse departamento, mas a maior matança de agentes de polícia desde os ataques de 11 de setembro de 2001.
Em chocantes vídeos de testemunhas publicados em redes sociais, ouvem-se disparos de armas automáticas. As forças de segurança detiveram três pessoas. Tanto Brown como o prefeito da cidade, Mike Rawlings, se negaram até o momento a dar detalhes sobre os suspeitos, além do nome de Johnson.
Suas palavras de ira contra os brancos são o único dado que poderia relacionar diretamente a matança de policiais com a indignação desencadeada pelas duas mortes recentes de negros nas mãos da polícia, uma em Baton Rouge e a outra em Minnesota. Mas o próprio Brown acrescentou: “Nada do que disse faz sentido. Não podemos especular os seus motivos. Só sabemos o que disse aos nossos negociadores.”

@theyCallMeWreck
O presidente Barack Obama condenou os fatos em uma declaração em Varsóvia, onde participa da cúpula da OTAN: “Esse foi um ataque atroz, calculado e desprezível contra agentes de segurança”. Obama ressaltou seu apoio aos integrantes das corporações policiais porque “têm um trabalho difícil” e “a imensa maioria deles faz um bom trabalho”. O presidente disse que assim que forem esclarecidos os fatos será preciso reabrir o debate sobre o fácil acesso às armas de fogo muito potentes “que tornam esses ataques mais letais”.
“Vimos tragédias como esta muitas vezes”, dissera Obama horas antes, tão logo chegou à capital polonesa, referindo-se às mortes, gravadas em telefones celulares, de negros por disparos de policiais. “Não é só um problema dos negros. Não é só um problema dos hispânicos. É um problema americano, e todos nós deveríamos nos preocupar”, disse.
A candidata democrata às eleições presidenciais dos Estados Unidos, Hillary Clinton, e seu rival republicano, Donald Trump, cancelaram os atos de campanha previstos para esta sexta-feira. Trump, sempre incendiário, evitou desta vez elevar o tom: “Nossa nação está muito dividida. Muitos americanos perderam a esperança. As tensões raciais pioraram, não melhoraram. Este não é o sonho americano que queremos para nossos filhos”, afirmou por meio de um comunicado.

O prefeito de Dallas, Mike Rawlings, declarou: “Nosso pior pesadelo ocorreu”. E acrescentou: é um momento desanimador”. A primeira vítima identificada entre os policiais é o agente Brent Thompson, de 43 anos, que integrou a corporação em 2009.
Nos primeiros momentos de grande confusão, a polícia divulgou pelo Twitter a foto de um suspeito, identificado como Mark Hughes, que se entregou quando viu sua imagem nas redes sociais. Na foto ele usava traje de camuflagem e portava um fuzil de assalto no ombro, mas depois foi posto em liberdade. “Tão logo vi minha foto, fiz parar um carro de Polícia”, explicou Hughes diante das câmeras da CBS. “Meu irmão poderia ter sido morto porque alguém cometeu a irresponsabilidade de postar sua imagem no Twitter”, declarou o irmão mais novo dele, Corey Hugues, à mesma emissora. “Não fizemos outra coisa, a não ser cooperar com a polícia”, garantiu.
Os protestos se sucederam ao longo da quinta-feira em diferentes cidades, de forma espontânea, depois da morte de Philando Castile, em Minnesota, e Alton Sterling, em Louisiana. O tiroteio transcorrido depois da manifestação em Dallas levantou o temor de novos distúrbios, como os desencadeados há dois anos em Ferguson (Missouri), quando Michael Brown, um rapaz de 18 anos que estava desarmado, foi morto a tiros por um policial branco.
Esses casos mostram as feridas raciais dos Estados Unidos, seus problemas ainda por resolver. O próprio governador de Minnesota, Mark Dayton, admitiu à imprensa na quinta-feira à tarde que via um viés racista no caso e sentia que “teria acabado de um modo diferente se fossem brancos”.

Na quarta-feira, Castile, de 32 anos, morreu abatido por um agente de polícia que o havia parado porque seu veículo tinha uma lanterna traseira quebrada. No vídeo, que sua namorada transmitiu ao vivo, ele é visto agonizando enquanto o policial continua apontando sua arma e a mulher relata sua versão dos fatos. Um dia antes, Alton Sterling, foi morto em Baton Rouge, Louisiana, por disparos dos agentes quando já tinha sido dominado.

Animais de estimação não são objetos ...

Muito interessante este texto publicado na Conjur ...


Animal de estimação não é um simples objeto para ser partilhado no divórcio
A solução de guarda e convívio com o bichinho de estimação, quando os donos se divorciam, não é tão novidade, mas vem crescendo a demanda na Justiça. Apesar da ausência de lei específica, o Poder Judiciário tem dado soluções de forma inteligente e ao mesmo tempo humana para essa corriqueira situação.
Mais um exemplo disso foi a acertada decisão do juiz da 7ª Vara Cível da Comarca de Joinville (SC), que decidiu que a competência para julgar casos envolvendo animal de estimação é da Vara da Família, e não da Vara Cível.
No caso, um homem e uma mulher recém-divorciados entraram numa disputa pela posse e propriedade de uma cadelinha chamada Linda. A decisão pautou-se em dois aspectos principais, uma porque se trata de nítida disputa por posse e propriedade em derradeira sobrepartilha, ou seja, divisão de propriedade comum aos cônjuges, e, segundo, porque os animais de estimação merecem tratamento distinto daquele conferido a um simples objeto.
Penso que as duas fundamentações foram bem pensadas, mas simpatizo-me mais com a segunda. Realmente, não se pode ter singela posse e propriedade de um animal de estimação, seres vivos dotados de consciência, com necessidades inclusive afetivas, protegidos por lei, não podendo ser reduzidos a simples objetos passíveis de divisão. Por outro lado, notadamente que nós, seres humanos, criamos expressivos vínculos afetivos com nossos companheiros animais, então, no caso do divórcio, como monetizar o pet para torná-lo passível de partilha? Evidente que não há como fazer.
A solução é a mesma dada aos filhos menores. Pelo viés consensual, é possível o entabulamento de acordo de guarda compartilhada de animais de estimação, inclusive como regulamentação de regime de convivência, previsão de férias e feriados alternados e até provisão financeira para os cuidados diários, como se o animal fosse mesmo um filho do casal, e tais acordos são comumente homologados pelo Judiciário.
O mesmo acontece nos casos de divórcio litigioso, ou como no caso discutido acima, em que o casal divorciou-se consensualmente, mas restou o litígio quanto à guarda e ao convívio com a cadelinha Linda (no caso, tratada como posse e propriedade). No caso disputado, certamente um juiz da Vara da Família dará a guarda àquele que demonstrar a melhor condição de exercê-la, bem como decidirá pelo direito de visita e convívio que cada um terá.
No Brasil, a Constituição Federal, no artigo 225, parágrafo 1º, proíbe que os animais sejam submetidos à crueldade. A Lei 9.605/98 — que estabelece crimes ambientais — define como crime a prática de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Ainda, o Decreto 24.645/1934 impõe medidas de proteção aos animais, assim, mesmo juridicamente, não se pode tratá-los como mero objetos.
Os animais de estimação ganharam importante espaço afetivo na vida de seus donos, algo absolutamente comum em nossa sociedade. Assim, inviável a partilha de sorte a deixar um dos consortes privado do convívio com o animal pelo qual nutre sentimentos e estima.

Por outro lado, em respeito às normas de proteção aos animais acima citadas, tais bichos de estima não podem simplesmente ser tratados como bens e, eventualmente, submetidos à maus-tratos por algum consorte que não tenha vocação para cuidar do animal. Assim, deve o juiz ter o cuidado de estabelecer a guarda e convívio com aquele que reunir melhores condições de criar o animal.

domingo, 1 de maio de 2016

Fukushima - reportagem em realidade virtual do El País ...

Muito interessante a novidade do site do El País, com reportagem que permitem a movimentação em 360º das imagens ... a primeira matéria trata do desastre no Japão em 2011 ...

O material demonstra que os interesses dos governos seguem desvinculados dos desejos da comunidade. No caso, o governo Japonês parece que insiste em manter a energia nuclear como principal fonte de energia, quando a população já manifestou sua vontade de mudança ...










‘Fukushima, vidas contaminadas’, uma reportagem em realidade virtual


EL PAÍS inaugura um novo canal de reportagens em realidade virtual voltando ao lugar, no Japão, onde um acidente nuclear causado por um tsunami mudou as pessoas para sempre



Esta é a primeira grande reportagem em realidade virtual de um meio de comunicação em espanhol, inaugurada pelo novo canal do EL PAÍS. Em 11 de março de 2011, um terremoto cujo epicentro estava a 130 quilômetros da costa matou milhares de pessoas e mudou a história do Japão para sempre. O país voltou a conhecer um dos seus grandes demônios: o pesadelo nuclear. O acidente da central nuclear de Fukushima causou a evacuação de 100.000 pessoas e uma situação de emergência só comparável à das bombas atômicas da Segunda Guerra Mundial. Cinco anos depois, milhares de japoneses ainda estão vivendo em barracões sob a ameaça da radiação.
As flores favoritas do senhor Kanakura são os ranúnculos persas, uma espécie de tulipa capaz de crescer na maioria dos solos em baixas temperaturas. Em Namie, uma pequena cidade na costa nordeste do Japão, o inverno engole a cada ano a primavera e a floração pode ser complicada. Toyotaka Kanakura, um homem de 65 anos muito cuidadoso com seu trabalho, tinha aqui a melhor floricultura antes do 11 de março de 2011. Naquele dia ele terminou de decorar a cerimônia de formatura da escola de ensino médio e comeu bolinhos de arroz antes de voltar para sua loja. Quando mastigava o último pedaço, exatamente às 14h46 (2h46 em Brasília), um tremor de magnitude 9, a cerca de 130 quilômetros da costa, rachou o fundo do mar e as vidas de milhares de pessoas. Ele correu para casa e passou a noite deitado, olhando para o teto trincado. Às seis horas da manhã o alarme soou na cidade e em poucos minutos ele se viu preso na estrada com quatro pacotes no porta-malas. Na direção oposta, a polícia e os bombeiros cruzavam a toda velocidade. Ele não pensou que fosse durar tanto.
Kanakura, um homem pequeno e reservado, balança a cabeça e olha para baixo. Os japoneses não são os melhores na hora de expressar seus sentimentos, diz ele. Do que ele mais sente falta desde aquela sexta-feira é de seu trabalho, seus clientes. No letreiro da loja, fechada por vigas de madeira fincadas na fachada, ainda se lê “As mais belas flores”. Namie, onde viviam 19.000 pessoas, é uma cidade fantasma. A 8 quilômetros da usina de Daiichi, ela está isolada no perímetro de exclusão, com raio de 20 quilômetros. Para chegar ao centro –com botas, luvas e máscara– é preciso atravessar uma cerca eletrificada e um controle de polícia com medidores de radiação. Seus habitantes só podem retornar de vez em quando, com autorização do Governo. É o marco zero do desastre.
O tempo congelou os vestígios de uma fuga apressada. Algumas casas ficaram abertas e animais selvagens como macacos e javalis as usam como abrigo. Outras têm os vidros quebrados e o vento faz ondular trapos que foram cortinas para o lado de fora. Há pratos de comida sobre as mesas, roupa desarrumada nos armários, anotações sobre a geladeira que falam das tarefas da semana e fotos de família reviradas nas gavetas. Na rua, sobrevivem algumas lojas com seu produto na vitrine ou uma barbearia com as tesouras e a máquina do último corte na prateleira. Nenhum sinal de ranúnculos ou outras flores, apenas dosímetros gigantes que alertam sobre a radiação os operários que reconstroem as áreas mais danificadas.
A costa foi a parte mais atingida. Cerca de 40 minutos depois do terremoto, uma onda de 15 metros arrancou tudo. Em um cruzamento, um sinal de trânsito e ruínas de banheiros indicam o lugar onde havia uma escola. Ficaram apenas as fundações e pedaços de casas destruídas pela onda gigantesca. Aqui morreram 200 pessoas, mas as vítimas do tsunami em todo o Japão chegaram a 21.000. Em seguida, a usina começou a emitir radiação para a atmosfera, para a terra e para o Oceano Pacífico, configurando o mapa silencioso de futuros problemas de saúde. Mesmo daqui a 300 anos a situação ambiental não estará completamente recuperada.
O mais angustiante é enfrentar um inimigo invisível. A radiação não tem odor e seu sabor é imperceptível na água e nos alimentos. Está na poeira, na terra, sobre os móveis... Em apenas alguns centímetros, sua intensidade muda radicalmente. Desde então, é preciso andar com medidores e ter cuidado para não ingerir ou inalar partículas: a radiação interna é devastadora e entra na corrente sanguínea facilmente, causando leucemia. O pior é o iodo, que afeta principalmente a glândula tireoide das crianças (foi constatado um aumento no número de casos desse tipo de câncer), e o césio 137 (um isótopo com meia-vida de 30 anos). Aqui eles estão em todos os lugares e os níveis superam os 2 microsieverts por hora (µSv/h): o objetivo do Governo é reduzir esse número até 0,27 para começar a realojar as famílias. No entanto, o senhor Kanakura, que hoje vive em uma vila nas proximidades, junto com outras pessoas deslocadas, ouviu rumores de que alguns moradores decidiram ficar e à noite são como espectros, fechados em suas casas.
Além do tempo que passarão no exílio, o resto dos habitantes ficará marcado para sempre. Durante décadas, ninguém comprará produtos com o nome de Fukushima e muitos japoneses desconfiarão daqueles que escaparam da radiação. As vítimas, como aconteceu com os hibakusha depois das bombas de Hiroshima e Nagasaki, foram inicialmente suspeitos de propagar o veneno nuclear e depois de tirar proveito da boa fé do resto dos cidadãos para receber grandes subsídios (mais de um milhão e meio de pessoas e já são cerca de 50 bilhões de euros, aproximadamente 197 bilhões de reais). O câncer aterroriza. Mas os problemas psicológicos das pessoas afetadas já são mais contundentes que os relacionados à radiação (cerca de 14,6% das vítimas sofreram de transtornos psicológicos, quando a média no Japão é de 4,2%, de acordo com estudos de Koichi Tanigawa, médico e especialista nesse caso) e em Fukushima houve uma disparada de suicídios relacionados com o acidente. O ato de sobreviver, como John Hersey escreveu em 1946 em sua legendária reportagem sobre a bomba atômica, será seu estigma para sempre.
Sete décadas se passaram, mas Hiromi Hasai se lembra de cada detalhe. Eram 8h15 da manhã (20h15 em Brasília) e ele tinha acabado de começar sua jornada de trabalho em uma fábrica militar de Hiroshima. Naquele dia ele estava aprendendo a fazer balas de metralhadora quando tudo foi coberto por “uma luz mais brilhante que o sol”. “Então as janelas começaram a tremer e saí correndo. Todo mundo dizia que uma bomba tinha caído sobre sua casa, mas eu não tinha visto nenhum avião. Era impossível”, lembra por e-mail. Ele estava a 15 quilômetros do marco zero, onde explodiu Little Boy, uma única bomba de 4,5 toneladas e 16 quilotons lançada por um avião norte-americano. Hoje ele tem 88 anos, é um físico nuclear aposentado e um renomado ativista contra a energia nuclear, especialmente “em uma terra de terremotos como o Japão”. “Foi dito que nunca aconteceria algo como Chernobyl ou Three Mile Island. Mas aconteceu. Fomos capazes de evitar a grande explosão, mas não sabemos o que vai acontecer com os vazamentos, e a segurança desses artefatos ainda está em questão”.
Até o acidente, o país tinha 54 reatores nucleares que produziam 29% da energia. Muitos estavam em áreas sísmicas, mas os cientistas japoneses não consideraram possível um terremoto dessa magnitude na costa de Tokohu. Num exercício de aceitação de culpa, a empresa Tepco, responsável pela usina, afirma: “Foi negligência nossa não ter implementado maiores medidas de segurança e ter pensado que era suficiente com as que tínhamos. (...) Se as tivéssemos adotado antes, o acidente poderia ter sido evitado”. Cerca de 800 toneladas de resíduos radioativos foram vertidas no mar e a usina continua a emitir radiação. Os trabalhos de desmontagem da central devem durar 40 anos, admite a empresa de energia. Três de seus diretores serão processados.
Fukushima mudou a percepção sobre a energia nuclear. Hoje a maioria da população, de acordo com todas as pesquisas, rejeita essa energia. Mas o Governo de Shinzo Abe mantém a ideia de reativar todos os reatores possíveis (no momento três estão funcionando) e lança ao mundo uma mensagem de normalidade. Até agora, o desastre custou ao país cerca de 170 bilhões de euros. E cinco anos depois continua na tarefa sem fim de descontaminar manualmente as regiões afetadas. Um exército de operários retira diariamente uma camada de cinco centímetros de terra de todo o solo em torno das casas nas áreas afetadas e enche milhares de sacos pretos de um metro cúbico, que amontoa na entrada de cada cidade. Mas a radiação acumulada nas florestas das áreas montanhosas se espalha uma e outra vez quando chove ou o vento sopra. Em alguns lugares, como a aldeia de Iitate –a 60 quilômetros do centro, onde os habitantes têm permissão para passar o dia, mas não para ficar para dormir–, ainda são registrados até 10 microsieverts por hora.
O senhor Anzai tem 63 anos e perambula pela casa que abandonou há cinco anos nesta aldeia, com sacos de plástico nos pés e as mãos enfiadas nos bolsos do blusão azul. Hoje ele vive realojado em um prédio do Governo com outros moradores. Ele não gosta desse lugar. Dois anos atrás teve um ataque cardíaco e um acidente vascular cerebral; o estresse e a sensação de insegurança o afetaram. Suas sequelas começaram sendo psicológicas. Mas no hospital encontraram um buraco no lobo frontal do cérebro que produziu uma paralisia do lado esquerdo do corpo. O médico disse que pode ter sido causado pelo césio absorvido durante tanto tempo. “Fomos enganados com os níveis de radioatividade. E as ajudas que nos deram não servem para nada. Perdi tudo: minha vida, meu trabalho, minha terra, minhas recordações... Estou muito irritado e cada vez que venho aqui eu desmorono”.
Os relógios de parede de Toru Anzai, ainda pendurados ao lado de um empoeirado calendário de 2011 em sua casa desabitada, pararam logo depois do acidente. Ao meio-dia ele tinha começado a arar os campos de arroz da família e duas horas depois a terra começou a tremer. Anzai, um camponês com inquietudes científicas e tecnológicas, sempre desconfiou da usina. Então ele correu para casa e encheu várias garrafas de água. Algo lhe disse que não voltaria a beber água da torneira. Trancou-se com seus cinco irmãos e só dois dias depois, em 14 de março, ouviu o estrondo da explosão do reator número 2. O vento não demorou a trazer para Iitate um penetrante odor de ferro fundido misturado com algo parecido a enxofre que grudava nas narinas. Naquele momento, o monstro de Fukushima já liberava enormes quantidades de componentes radioativos, formando uma nuvem tóxica que voava em direção à casa de Anzai nas montanhas.
Mas o prefeito de Iitate insistiu que não havia risco algum para os habitantes. Desconfiado por natureza, o senhor Anzai comprou seu primeiro dosímetro em 18 de abril. “Made in China”, afirma com algum desdém. Custou 500 euros, mas forneceu informações valiosas. O lugar onde ele e seus irmãos dormiam fazia mais de um mês desde o acidente já acumulava 6 microsieverts por hora (20 vezes acima do mínimo fixado pelo Governo para realojar os residentes). A usina tinha liberado radiação para a atmosfera e as descargas para o mar chegavam a 700 toneladas. Anzai e o resto dos moradores de Iitate foram a população que teve a maior exposição à radiação.
O El País Semanal acompanhou o Greenpeace durante dois dias para fazer medições pela região de Fukushima. É fácil verificar, medindo a lama das sarjetas, como os níveis ainda estão bem acima do limite estabelecido pelo Governo para concluir a situação de emergência e interromper a ajuda de cerca de 700 euros por mês que os deslocados recebem. “Em condições normais, já é impossível se livrar dos resíduos. Mas se há um acidente, é uma utopia pensar em uma solução além de deixar passar o tempo. Os planos de descontaminação, que não estão funcionando, escondem uma estratégia para forçar as pessoas a voltar para suas casas quando ainda não estiverem livres da radiação. Tudo para voltar a fazer funcionar os reatores”, diz Raquel Montón, chefe da campanha nuclear do Greenpeace durante os testes de radiação.
A terra dos vivos está contaminada. Mas também a dos mortos. Os cemitérios de muitas cidades tiveram que passar pelo mesmo processo de limpeza que toda a área e os operários cavaram no lugar onde jazem os familiares das vítimas passivas da catástrofe. Não há trégua nem para aqueles que descansam e as lápides estão cobertas em alguns lugares com lonas pretas. Ao redor, onde havia plantações de arroz, agora se amontoam intermináveis fileiras de sacos pretos sobre a neve esperando sua vez para serem incinerados em fábricas construídas na região. Já foram queimados 9,5 milhões e faltam outros 13 para terminar a limpeza de um espaço duas vezes maior que a cidade de Madri. Enquanto isso, a vida daqueles que perderam tudo avança lentamente em casinhas pré-fabricadas ao longo da fronteira com a zona de exclusão.
O campo de alojamento Koike 1 encontra-se entre um cemitério e uma fábrica fumegante na periferia de Minamisoma, a 30 quilômetros da usina. As casinhas de 15 metros quadrados, onde vivem cerca de 200 pessoas, são separadas por paredes finas. Às onze horas da manhã, a senhora Inaride Yuko volta das compras e desce do ônibus cambaleando com um saco de bolinhos de arroz. Seus joelhos maltratados quase não conseguem sustentá-la e ela precisa se apoiar em uma muleta. No ponto desse acampamento desolado é possível ler: “Estação do amor”. Faz parte da maneira tão japonesa de infantilizar a realidade com desenhos e personagens coloridos. Mas ela tem 73 anos e só gosta do saquê de Okinawa, seco e picante, afirma sorrindo com malícia. Os outros lhe dão dor de cabeça. Um copinho de manhã e outro antes de deitar. É a sua maneira de economizar em pílulas para dormir e adoçar os dias solitários nesse tipo de campo de refugiados.
No dia 11 de março, o mar arrancou sua casa, a apenas um quilômetro da costa. Ela e seu filho escaparam por milagre. Na noite anterior, quando ouviram um primeiro tremor, embalaram alguns pertences e prepararam o carro para fugir se chegasse uma réplica maior. Foi o que aconteceu. O cachorro ficou louco minutos antes. Saíram correndo e de uma colina viram o mar engoliu sua casa. Ela acha que em breve terá uma nova casa com seu filho. De madeira finlandesa, supõe. Mas já se passaram cinco anos aqui, lembra-se enquanto tira lentamente as luvas brancas e prepara um chá verde. Dobra como pode as pernas e se senta em um pequeno futom no quarto, onde mostra algumas lembranças, como um cartão postal da cidade de Ronda, em Málaga. O resto de sua vida está guardado em pequenas caixas transparentes.
A maioria dos japoneses que perdeu suas casas no tsunami ou teve que abandoná-las pela radiação, vive nesses campos. Mas houve também quem tentou resistir em sua casa. O professor Takashi Sasaki, de 76 anos, e sua esposa, na cama por causa do Alzheimer, ignoraram a ordem de desalojo. No início, ficaram com medo. À noite, toda a cidade ficava deserta e às escuras. Pouco depois, pensou que era pior o que estavam vivendo seus vizinhos. O Governo errou e foram levados para Iitate, para onde ia a nuvem tóxica, e teve que deslocá-los novamente. Durante esse trânsito doloroso, denuncia Sasaki, cerca de 200 pessoas morreram, a maioria idosos e doentes que sucumbiram ao esforço inútil. O professor, hispanista apaixonado por Miguel de Unamuno, parafraseia o filósofo espanhol para explicar sua situação: “Continuamos com nossa vida biológica, mas nos roubaram a biográfica”.
Sasaki, autor de Fukushima, vivir el desastre e um blog escrito em seus dias de reclusão, não tem medo de ser contaminado. Ele e sua mulher, deitada no quarto ao lado, morrerão antes que a radiação tenha algum efeito. Seu principal problema, que conta em um lento espanhol, é que ninguém assume a vergonha. “Dizem que foi um acidente. Mas é uma consequência de ter perdido a essência da nossa cultura, o contato com a natureza, o trabalho lento, nossas cerimônias... Fracassamos na educação e nas tradições. Os deuses japoneses são hoje o conforto e o progresso. A energia nuclear é um reflexo disso, e o acidente, uma consequência natural”. Sasaki gostaria de saber que alguém assumiu a vergonha.
Na manhã do acidente, o primeiro-ministro do Japão, Naoto Kan, respondia a perguntas da Comissão de Finanças do Parlamento. Fazia apenas um ano que estava no cargo e sua gestão econômica, com um iene disparado e as importações em queda livre, tinha data de expiração. Após o terremoto, que em Tóquio atingiu uma magnitude de 7,4, a reunião foi interrompida e ele desceu as escadas até a sala de emergência. “As primeiras notícias que recebi foi que outros reatores na região tinham sido desligados corretamente. Depois de uma hora, recebi a informação de Daiichi e me disseram que não havia luz”, lembra no convés do Rainbow Warrior, o barco do Greenpeace no qual navega pela costa de Fukushima. Ao chegar a um quilômetro e meio da central nuclear, situada em uma área que a Tepco rebaixou para aproveitar a força do mar, culpa a empresa. “Se não tivessem feito isso, o tsunami talvez não tivesse impactado tanto na usina”.
Kan, um ex-primeiro-ministro repudiado pela opinião pública, admite agora sua responsabilidade. Acredita que sonegaram-lhe informações para enfrentar o acidente e lembra como obrigou o diretor-geral da central a permanecer nela com os trabalhadores quando ameaçaram deixar o lugar ao ver que Daiichi poderia explodir. Antes disso, como todo o establishment japonês, era um defensor da energia nuclear e participou ativamente de seu aparato de propaganda internacional. Hoje quer se redimir nos braços dos ecologistas.
– Depois de cinco anos, sente-se culpado?
– Claro. E acima de tudo, responsável. Hoje penso que todas as usinas nucleares deveriam ser fechadas – firma contundente já em uma das cabines do navio.
Fukushima, cuja ferida continua aberta cinco anos depois, foi apenas um aviso. A pergunta, acredita o ex-primeiro-ministro, não é se um acidente como aquele poderia acontecer novamente. A questão é saber quando e onde isso vai acontecer.