terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Questões sobre o direito ao esquecimento ...

Sobre o direito ao esquecimento ...



Opinião

Esquecimento não é direito e torna os fatos ainda mais vivos se judicializado

26 de novembro de 2016, 6h43
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A liberdade de expressão é um dos eixos estruturais do Estado Democrático de Direito, eis que se destina à criação de um mercado livre de ideias, à autodeterminação democrática do povo, à procura da verdade, ao exercício do poder e da atividade governamental, ao desenvolvimento pacífico da sociedade, à expressão da autonomia individual e à formação da opinião pública na democracia comunicativa[1].
O sistema anglo-saxão confere uma maior amplitude à liberdade de expressão, enquanto que o sistema europeu se inclina à sua restrição.
Sob o ângulo do Direito brasileiro, as liberdades de expressão e de imprensa são consagradas nos artigos 5º, inciso IX, e 220, parágrafo 1º, ambos da Constituição Federal. Apresentam uma significativa amplitude conceitual na ordem constitucional, pois servem de fundamento para outras liberdades, ocupando uma posição de preferência (preferred position doctrine) na ordem jurídica. Contudo, não são concebidas como um direito absoluto ou ilimitado, encontrando limites nos direitos da personalidade[2].
Reconhece-se, assim, uma coexistência entre as liberdades de expressão e de imprensa e os direitos da personalidade, de modo que a intimidade e a vida privada também devem ser objeto de proteção no Estado Democrático de Direito.
Nesse contexto, a constitucionalização do Direito Civil retrata a superação do dogma clássico da patrimonialização das relações privadas, emanando um conjunto de regras e princípios que se destina à proteção da pessoa humana, em observância aos princípios da unidade do ordenamento e da supremacia da Constituição.
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais também encontra guarida no Direito brasileiro, possibilitando a incidência imediata das normas constitucionais para nortear as relações privadas.
Assim, ganham expressão os direitos da personalidade, amplamente amparados tanto pela Constituição de 1988 como pelo Código Civil de 2002.
Para Limongi França, são “as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim da sua projeção essencial no mundo exterior”[3]. Vale dizer, são os direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, despontando como situações jurídicas existenciais reconhecidas ao indivíduo.
Nesse sentido, parte da doutrina tem invocado que o direito ao esquecimento, também conhecido como direito à autodeterminação informativa, “direito de ser esquecido”, de “ser deixado em paz” ou de “estar só” (“the right to be let alone”), seria um desdobramento dos direitos da personalidade.
Segundo essa corrente, o esquecimento é um corolário dos direitos da personalidade, em especial da privacidade, da honra e da dignidade humana, despontando como uma proteção do indivíduo face ao superinformacionismo. Ou seja, seu titular tem a pretensão de não ser mencionado pela mídia sobre fato pretérito que o submeta a constrangimento, ainda que verídico, devendo tal fato ser retirado do alcance público, pois, com o decorrer do tempo, caiu no esquecimento social[4].
Salienta-se que a discussão acerca da judicialização do esquecimento produz ressonâncias no âmbito do Direito Penal, sobretudo diante de casos criminais de notoriedade veiculados pela mídia ao longo do tempo.
Primeiramente, o direito ao esquecimento guarda relação com os direitos do preso. No Direito Comparado, decidiu o Tribunal Constitucional alemão que um canal de televisão fosse proibido de exibir um documentário referente a determinado acusado, impedindo que a imprensa explorasse, por prazo indeterminado, a pessoa do criminoso e sua vida privada, sob o risco de embaraçar sua ressocialização.
No Brasil, a “chacina da Candelária” foi um dos casos inéditos de reflexão acerca do direito ao esquecimento no Brasil. Ademais, jurisprudência pátria firmou o entendimento de que o acusado tem o direito de que seus antecedentes criminais não sejam divulgados após determinado período de tempo, com vistas à sua ressocialização, a teor do Enunciado 531, do Conselho de Justiça Federal.
Assinala-se que, ao menos no campo das penas, o esquecimento propicia o desenvolvimento da Justiça restaurativa, na qual o Estado deixa de ser preponderantemente repressor, inclinando-se à reconstrução do elo social entre a coletividade e o próprio infrator.
De todo caso, a jurisprudência brasileira ainda não conta com vastos precedentes sobre o direito ao esquecimento. A título de argumentação, essa matéria chegou à apreciação do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário 833.248 RG/RJ, envolvendo o caso do programa Linha Direta, exibido em 2004, firmando-se o entendimento pela repercussão geral do direito ao esquecimento na órbita cível, sob o fundamento de haver densidade constitucional e a necessidade de ponderação de princípios constitucionais.
Esse precedente é um marco na análise do tema, pois o esquecimento será analisado na perspectiva da vítima do delito, cabendo as seguintes reflexões: (i) até em que momento é possível alegar o esquecimento; (ii) se todo e qualquer fato do passado pode ou não ser apontado como objeto de esquecimento no presente; e (iii) em havendo o reconhecimento da ilicitude, discute-se qual seria a sanção mais apropriada para a proteção intimidade, ou seja, se necessária a tutela inibitória ou a tutela reparatória genérica ou específica.
Em outro caso, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815, a suprema corte se posicionara pelo afastamento de exigência prévia de autorização para a publicação de biografias. Porém, entende-se que esse tema vai mais além: atinge o campo do direito ao esquecimento.
O direito ao esquecimento também guarda relação com o regime ditatorial no Brasil, de 1964 a 1985. Diversos setores sociais defenderam um discurso ao esquecimento do período de exceção, havendo uma “clínica ao esquecimento”, sob o pretexto de que a Lei da Anistia fosse integralmente aplicada para ocultar um passado obscuro da história nacional.
Em outubro de 2016, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu o direito ao esquecimento de certo fato ocorrido durante o período ditatorial no Brasil. De acordo com esse posicionamento, os acontecimentos da época ditatorial foram anistiados à luz da Lei 6.683/1979, de modo que devem se tornar esquecidos do público.
Por outro lado, entende parte da doutrina que a ordem constitucional não privilegia o direito ao esquecimento, máxime nos casos ditatoriais, de modo que esse direito não pode ser considerado um desdobramento da dignidade humana, da privacidade ou de qualquer outro direito fundamental, sendo apropriada a referência ao “direito ao isolamento”[5]
O direito ao esquecimento também é discutido sob o prisma do Direito Digital, máxime se em colisão com as liberdades de expressão e de imprensa. Segundo Raphael Janny, “um mero descuido, na internet, é imperdoável, porque é inesquecível”[6].
Essa questão tornou-se ainda mais refletida a partir da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre o reconhecimento do direito ao esquecimento aos provedores de serviços de busca na internet, sobretudo da remoção de fotos e vídeos de “pornografia de vingança” (revenge porn).
Nos Estados Unidos e na União Europeia, adota-se o sistema do notice and takedown, ou seja, um procedimento que deve ser seguido pelos provedores de internet visando à proteção da intimidade, a ponto de excluir a responsabilidade dos próprios provedores diante de eventual litígio.
Sob o ângulo do Direito brasileiro, a Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) confere ampla proteção à liberdade de expressão em detrimento da intimidade e da privacidade no ambiente virtual.
Em novembro de 2016, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.593.873, firmou o posicionamento de que o pedido de direito ao esquecimento não pode ser direcionado ao Google, pois os provedores de busca não podem ser obrigados a eliminar de seu sistema os resultados de determinado termo, expressão, foto ou texto específico, por ausência de fundamento normativo, exceto no caso de encaminhamento do próprio provedor ao conteúdo de fotografias ou notícias (provedor de conteúdo)[7].
Salienta-se, outrossim, que o jornalismo investigativo é uma manifestação da liberdade de expressão, eis que, em geral, propicia a transparência e a divulgação de informações relevantes ao interesse público. Funda-se, pois, na premissa de que não há jornalismo sem investigação, como nos casos do Walter Gate, The Panama Papers e The Bahamas Papers.
Afirma-se, no entanto, que o esquecimento é incompatível com a liberdade de expressão e, acima de tudo, com o jornalismo investigativo.
Em outubro de 2016, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) apresentou uma petição perante o Supremo Tribunal Federal, com a finalidade de participar como amicus curiae no Recurso Extraordinário 833.248 RG/RJ, invocando os seguintes fundamentos: (i) o esquecimento não é previsto nem sequer amparado em qualquer norma constitucional, não havendo qualquer repercussão geral sobre o tema; e (ii) a história deve se encarregar dos fatos que podem ou não ser esquecidos.
Entende-se, dessa forma, que o jornalismo investigativo deve ser amplamente resguardado e difundido, com o escopo de contribuir para a elucidação de casos criminais, desde que desprovido de interesses econômicos e ideológicos e direcionado à veracidade na comunicação social.
Em suma, infere-se que a judicialização do esquecimento traz mais incertezas que segurança jurídica.
Primeiramente, os meios de comunicação têm acentuado interesse econômico na divulgação das notícias em geral, revelando-se dificultoso o esquecimento dos fatos sociais, sobretudo daqueles de maior notoriedade. Ademais, os meios tecnológicos são amplamente utilizados, tendo o potencial de divulgar, resgatar e petrificar os mais diversos acontecimentos históricos na sociedade da informação.
Além disso, o crime é um acontecimento de interesse público, de sorte que a coletividade tem o direito de ter acesso à informação dos fatos sociais e, acima de tudo, ao exercício do jus puniendi.
Eventual judicialização do esquecimento também geraria reflexos no âmbito processual criminal, vez que, se determinado o esquecimento de certo fato, a continuidade da persecução tornar-se-ia prejudicada diante do surgimento de novas provas.
Acrescenta-se, outrossim, que o sigilo dos autos já é um mecanismo jurídico apto, ao menos que temporariamente, a assegurar o segredo de Justiça dos casos criminais de repercussão social.
Por derradeiro, é dificultoso determinar um padrão de indenização civil nesses casos.
Assim, eventual proteção da intimidade deve recair nos mecanismos já existentes no âmbito dos direitos da personalidade, conferindo-se prioridade ao direito de resposta e à responsabilidade civil.
Portanto, é teratológico ou quiçá inviável judicializar o esquecimento, posto que o Direito não tem o condão de conter a memória nem o estado de consciência humana. O esquecimento não é direito e, se judicializado, tornará os fatos uma recordação ainda mais viva e instigante na vida social[8].

[1] MACHADO, Jónatas E. M. Difamação de figuras públicas: tutela jurídica e censura judicial à luz do direito português. Curitiba: Juruá, 2016, p. 19.
[2] NESPRAL, Bernardo. Derecho de la información. Periodismo: derechos, deberes y responsabilidades. Buenos Aires: Bdef, 2014, p. 30.
[3] FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 1025.
[4] Cf. PAIVA, Bruno César Ribeiro de. O direito ao esquecimento em face da liberdade de expressão e de informação. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 13, n. 22, p.273-286, jan./jun. 2014, p. 275.
[5] NETO, João dos Passos Martins; PINHEIRO, Denise. Liberdade de informar e direito à memória: uma crítica à ideia do direito ao esquecimento. Novos Estudos Jurídicos. V. 19, N. 3, p. 808-838, 20014, p. 835.
[6] JANNY, Raphael Lobato Collet. A liberdade de expressão e o direito ao esquecimento na internet. Revista da ABPI, Rio de Janeiro, n. 137, p.54-60, jul./ago. 2015, p. 54.
[7] STJ, 3ª Turma, REsp. 1.593.873, relatora ministra Nancy Andrighi. Julgado em: 11/12/2014.
[8] Cf. lançamento da obra: VALENTE, Victor Augusto Estevam. Crimes de imprensa e aspectos práticos de processo penal: liberdade de expressão, direitos da personalidade, inquérito policial, procedimento e comentários à Lei do Direito de Resposta (Lei 13.188/2015). Coleção de Ciências Criminais. Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha (coord.). 1. ed. Salvador: Juspodivm, 2017.
Victor Augusto Estevam Valente é advogado, mestre em Direito Penal pela PUC-SP, professor em Direito Penal da PUC-Campinas.
Revista Consultor Jurídico, 26 de novembro de 2016, 6h43

Sobre o trabalho escravo no Brasil

Eram escravos no Brasil e não sabiam. Agora o mundo todo ficou sabendo

Governo terá de pagar quase 5 milhões de dólares para 128 trabalhadores rurais que foram escravizados na Fazenda Brasil Verde, no Pará


Luis Sicinato de Menezes, 64, mais conhecido como Luis Doca, é um trabalhador rural aposentado, da cidade de Barras, no interior Piauí, a 130 quilômetros da capital, Teresina. Em seus 30 anos como peão de trecho (o famoso bico, que quer dizer trabalho temporário), andando de fazenda em fazenda no Norte do país, ele trabalhou no corte da juquira, uma mata rasa, considerada um estorvo para a expansão da agricultura e criação de gado. O trabalhador vive por um código de honra: um homem sempre cumpre sua palavra e nunca foge. Demorou muito para que ele entendesse que aqueles que buscavam seus serviços não compartilhavam de seus valores. A vida de Luís Doca é marcada por aliciamentos, ameaças de morte, trabalhos em situações desumanas, frequentemente sem receber. Não foram poucas as vezes em que voltou para casa sem nada. Só com a vida. "Antes, eu não entendia. Mas aí meti na cabeça. Todos os trabalhos que fiz na vida eram trabalho escravo", conta.
Luis Doca faz parte de um grupo de 128 trabalhadores rurais submetidos ao trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde, localizada em Sapucaia, sul do Pará, que processou o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). E ganhou. No primeiro caso sobre escravidão e tráfico de pessoas decidido pela Corte, o Estado Brasileiro terá que indenizar os trabalhadores em quase 5 milhões de dólares por conivência com o trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde, pertencente ao Grupo Irmãos Quagliato, um dos maiores criadores de gados do Norte do país.
Desde 1940, o artigo 149 do Código Penal Brasileiro prevê pena de dois a oito anos para quem reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Em 2003, a lei foi ampliada, entrando outras disposições que tornam mais amplo o combate a essa forma de exploração, como submeter alguém a trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho, e restrição da locomoção por dívida. Isso fez com que o país fosse reconhecido internacionalmente com uma das legislações mais combativas do mundo.
No papel, então, estava tudo certo e adequado para evitar abusos em um país cuja memória escravagista, que deveria ter acabado em 1888, ainda persiste. Na prática, a Fazenda Brasil Verde se utilizou de um expediente visando o lucro em detrimento da dignidade de seus contratados. Ela passou por 12 fiscalizações do Ministério do Trabalho, e em todas foram encontradas irregularidades, que, em alguns casos, levaram ao resgate dos trabalhadores. Eram casos de trabalhadores que dormiam em galpões, sem eletricidade, camas ou armários. A alimentação era insuficiente, de péssima qualidade e o material de trabalhado eram descontados de seus "salários", virando uma dívida com os patrões, que os trabalhadores não podiam pagar, num círculo vicioso interminável. Nessas condições, vários ficavam doentes, sem receber atenção médica adequada.
Por muitos anos, o Estado Brasileiro esteve ciente dos problemas, mas nunca condenou ninguém, nem foi capaz de prevenir outras violações. A Fazenda Brasil Verde foi obrigada a pagar, no máximo, os valores rescisórios dos trabalhadores resgatados. Tratam-se de compensações irrisórias. Isso porque uma das características da escravidão contemporânea é que o trabalhador é visto como uma mercadoria descartável, a ser usada por curto período de tempo – três ou quatro meses –, e logo dispensado.
Na escravidão histórica do Brasil, o custo de conseguir um escravo negro era alto, fazendo com que ele fosse considerado um investimento a ser amortizado com o passar dos anos. Os 'novos' escravocratas não precisam investir muito para conseguir mão de obra. Basta o boca a boca em uma cidade pobre como Barras, com o anúncio de uma "oportunidade de emprego", e vários trabalhadores farão fila para segui-los.Todos compartilhando as mesmas características: homens entre 15 e 40 anos de idade, em sua maioria negros ou pardos, oriundos dos estados mais pobres do país e sem qualificação.
Essa realidade é seguida de perto pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que juntamente com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), identificou na repetição das violações na Fazenda Brasil Verde uma chance de desmascarar essa cultura que ainda persiste no Brasil. As entidades levaram dois anos levantando documentos e procurando os trabalhadores prejudicados. Muitos que sofreram as violações não puderam ser encontrados. O caso foi levado para a Comissão em 1998. O Estado Brasileiro tentou negociar e pressionou muito para que o caso não chegasse à CIDH. Não conseguiu.
Foi a ausência de efetividade na aplicação da lei para proteger os direitos dos trabalhadores, punir os responsáveis e reparar os danos, que fez com que o caso fosse aceito na CIDH em 2015. Uma vez na Corte, o Estado Brasileiro se tornou réu. Isso porque o sistema de direitos humanos foi criado para punir abusos de Estados contra seus cidadãos. Apesar da legislação internacional reconhecer que a Fazenda, mesmo sendo uma entidade jurídica, é capaz de violar os direitos humanos, ela não pode ser julgada em âmbito internacional. Está em discussão na Organização das Nações Unidas um tratado sobre empresas e direitos humanos que pode mudar esse cenário e tornar mais difícil que as empresas ficarem impunes.

Relatos de uma vida de escravo

Luis Doca fez parte da última turma resgatada, em 2000. Sua narrativa por vezes parece saída de um livro de história do século XIX. Após serem aliciados pelo "gato", um capataz da fazenda, eles viajaram para o Pará de ônibus, apenas com a promessa do que viriam a receber. Uma vez na fazenda, os trabalhadores não têm a opção de desistir ou até mesmo abandonar o emprego, como em uma contratação regular. Assim como outros trabalhadores, Luis Doca explica em seus relatos, que para sair da fazenda é só fugindo, um ato de resistência comum à escravidão histórica. Assim como no passado, a pena pela fuga é a ameaça de tortura ou morte, explica.
Francisco das Chagas Diogo, 70, outro trabalhador que foi resgatado na Fazenda Brasil Verde, contou que a promessa do gato era que, após 15 dias na fazenda, ele voltaria para Barras levando um dinheiro para as famílias. Mas isso não aconteceu. Eles foram deixados no meio da floresta, em situação precária. O trabalho começava antes de amanhecer e ia até o cair da noite. Sem descanso, ou eram chamados de preguiçosos. Para comer um pouco melhor, tinham que matar capivaras. E para ele, fugir não era opção. "Lá tinha muito pistoleiro, o sujeito que fugisse, iria morrer. Aí, tinha que aguentar", conta Chagas Diogo.
Dois trabalhadores não aguentaram e fugiram em busca de ajuda. Foram três dias em meio da mata até conseguir chegar a alguém que os levasse até a polícia mais perto. Eles voltaram à fazenda com os fiscais do Ministério do Trabalho. Só assim, os trabalhadores puderam escolher deixar o local. O relatório da fiscalização mostrou os detalhes de como eles viviam em situação degradante. "A gente comia nos capacetes [de construção]. Se você não tivesse um capacete tinha que esperar os outros comerem, para usar no capacete de alguém", conta Luis Doca.

O custo de ser conivente com a escravidão

A Corte reconheceu na sentença que o Brasil violou direitos estabelecidos em vários artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos, como a proibição da escravidão e servidão; garantia a integridade física, psíquica e moral da pessoa; e direito à liberdade pessoal.
E apesar de a dignidade humana não ter preço, a conivência do Estado com a escravização de trabalhadores em pleno regime democrático tem seu custo. A CIDH calculou um valor de reparação inédito. Cada um dos 85 trabalhadores submetidos ao trabalho escravo, que foram resgatados durante a fiscalização na fazenda em 15 de março de 2000, vão receber como reparação 40.000 dólares (cerca de 120.000 reais). Outros 43 trabalhadores resgatados durante uma fiscalização em 23 de abril de 1997 receberão 30.000 dólares (cerca de 90.000 reais). É pouco, se considerado o sofrimento e aflições que os trabalhadores passaram na condição análoga à de escravo.
“Eu tinha esperança de ganhar algo, mas era mais um sonho”, afirma Luis Doca. O trabalhador tem planos para o dinheiro. “Já matutei um bocado de coisa, tenho um terreno e quero crescê-lo, ter uma sementinha de gado. Arrumar minha casa, puxar energia para a casinha do terreno. Pagar minhas dívidas. E enquanto esses braços aqui e os da mulher tiverem forças, vamos continuar trabalhando.” Chagas Diogo também vai continuar trabalhando. Seu sonho é comprar um pedaço de terra, e deixar de ser rendeiro. “Quero garantir emprego para meus filhos”, conta.

Os Pets podem mudar o direito que conhecemos ...

Gostei muito dessa matéria no El Pais. Além de curiosidade do tema, a matéria ajuda a entender o tratamento que o pets vem recebendo em decisões judiciais, a exemplo dos divórcios em que os casais possuem pets.

Vale a leitura







Meu bicho manda mais que eu

A febre por animais de estimação se espalha pelo planeta. A indústria faturou no ano passado mais de 350 bilhões de reais

A febre por animais de estimação se espalha pelo planeta. Movimenta uma indústria que no ano passado faturou mais de 350 bilhões de reais só nos Estados Unidos, Europa e o Brasil. O setor é um termômetro da economia global. E um reflexo dos dilemas e excessos de sociedades cada vez mais urbanas e ensimesmadas. Um terço dos espanhóis acha seu cão ou gato mais importante que os seus amigos. A bichomania motiva um debate sobre as relações entre os humanos e outras espécies.

1. É um setor que não para de crescer

Da alimentação aos serviços de spa, barbearia, massagem e manicure… Os animais de estimação movimentam um grande negócio.
Por Sara Cuesta
Mar Ribé, desenhista gráfica espanhola de 35 anos, se dirige ao altar. Usa um vestido rosado e caminha de braço dado com seu pai, Joan. Na mão esquerda, ele segura pela correia uma pequena cocker com um vestido idêntico ao da noiva. A mesma cor, os mesmos tecidos, o mesmo desenho. Ribé sempre sonhou que, no dia do seu casamento, sua cadela Sheera levasse as alianças. Quem a conhece bem sabe disso. Mas a cena supera todas as expectativas. “O pessoal alucinou. Apontaram as câmeras e celulares para o chão para fotografar a Sheera em vez de mim!”, recorda Ribé enquanto mostra o álbum do casamento, que aconteceu em setembro.
“Já em tempos imemoriais, a aristocracia tratava com atenção os seus animais de estimação”, diz o psicólogo Stanley Coren, professor da Universidade da Colúmbia Britânica em Vancouver (Canadá) e especialista em comportamento animal. “Se levarmos em conta a tendência a tratar as mascotes como filhos, se entende por que nas atuais sociedades desenvolvidas se gasta cada vez mais dinheiro em produtos e serviços para mimá-las”.
Tiram-se as medidas de ‘Eddie’. Um cliente habitual para o qual se fará um agasalho Felipe Hernández
Na verdade, a devoção pelas mascotes já não é mais só coisa de ricos. A explosão da indústria dos animais de estimação se tornou, de fato, um indicador do crescimento das classes médias no mundo, em particular no Brasil e Ásia. Só em ração, o setor movimenta mais de 185 bilhões de reais por ano.
O vestido de Sheera para acompanhar Mar Ribé ao altar custou 95 euros (346 reais) e foi desenhado sob medida na Caninetto, uma alfaiataria para bichos em Barcelona. Faz três anos que Edgard Gil e seu marido, Haritz Aramendi, montaram sua pequena loja-ateliê. Dezenas de diminutos casacos e camisetas coloridos pendem das suas araras. Mar Ribé e seu então noivo, Germán Tello, percorreram quatro vezes os 100 quilômetros que os separam do estabelecimento para fazer as provas do vestido de Sheera. “Minha mãe me dizia que estava mais preocupada com o traje dela que com o meu”, conta Ribé. “E, claro, sempre que íamos o Germán tinha que ficar fora da loja. Porque se visse o vestido da Sheera saberia como era o meu.”
Ribé viaja habitualmente a Nova York a trabalho e recorda que lá celebrações como a sua são comuns. Os Estados Unidos são o país pioneiro no desenvolvimento de novos serviços para animais de estimação, e também seu principal mercado. O setor faturou em 2015 o equivalente a 204 bilhões de reais, o dobro da cifra de 10 anos antes, segundo a Associação Americana de Produtos para Mascotes. A Europa vem bem atrás, com um faturamento de 109 bilhões e um crescimento anual de 1,8%, de acordo com dados da Federação Europeia da Indústria de Comida para Mascotes (ver gráfico).
A cocker Sheera com o vestido usado no casamento de sua dona, no qual portou as alianças. Ambas estavam com trajes combinando Felipe Hernández
A alfaiataria do Gil e Aramendi nasceu impulsionada por essa demanda. “Sabíamos que o setor não parava de crescer”, contam. Os dois primeiros anos foram duros, mas em 2015 embolsaram um lucro de 60.000 euros (218.000 reais). E crescendo. “Nossa capacidade de evoluir não depende de que o setor cresça na Espanha, e sim de que cresça internacionalmente”, diz o casal, que acaba de fechar um acordo para comercializar sua grife em Nova York. Em longo prazo, seus olhos estão voltados para a América Latina, onde no ano passado o setor faturou cerca de 30 bilhões de reais, mantendo um crescimento impressionante: entre 11% e 13% por ano, sobretudo no México, Brasil e Argentina, segundo dados do Euromonitor.
Tal crescimento exponencial também conquistou o setor de luxo, que se somou ao boom dos animais de estimação. Grandes firmas da moda, como Louis Vuitton e Gucci, têm seus próprios modelos de bolsas para transportar bichinhos. Adolfo Domínguez criou uma linha de roupa canina, e a Swarovski conta com uma gama de colares e joias. Em 2015, os acessórios específicos geraram mais de 1,6 bilhão de reais em países como o Japão e mais de 23,6 bilhões na Europa. “As pessoas decidiram que suas necessidades são as dos seus animais e, nesse sentido, talvez pudéssemos falar de um trato antropomórfico”, observa Miguel Ibáñez, professor de etologia e bem-estar animal na Universidade Complutense de Madri. Em grandes cidades como Los Angeles, Tóquio e Dubai, proliferam hotéis e resorts de luxo para uso e desfrute de animais. Muitos incluem tratamentos exclusivos como manicure e spa. Em 2015, esse mercado de alojamentos e serviços faturou mais de 18 bilhões de reais nos EUA.
'Tibet', um cão da raça shi tzu Felipe Hernández
Nicolás Herrero tem um salão de tosa com spa no bairro madrilenho de Malasaña. Numa terça-feira pela manhã, atende um de seus clientes habituais. Chama-se Tíbet e é um pequeno shih tzu com dermatite alérgica, que é levado lá semanalmente para receber um banho com ozônio que hidrata sua pele. “Atendemos entre 80 e 100 cães por mês”, diz Herrero. “A maioria vem ao salão de tosa, embora cada vez mais clientes solicitem o spa”. Tíbet levanta a cabeça em meio à espuma da banheira prateada e permanece imóvel durante os 25 minutos de tratamento. A seguir: secar, cortar e pentear. O serviço completo custa 45 euros (164 reais). Ou mais, segundo o tamanho do animal.
‘Tibet’ tem dermatite alérgica. As sessões de spa com ozônio hidratam sua pele Felipe Hernández
Perto deste spa há uma rotisseria para bichos, a Miguitas. Os brownies de fígado de frango e as tortas de salmão começam a sair do forno durante a manhã de uma quinta-feira. Enquanto sua proprietária, Charo Hernández, abre a loja, um labrador negro puxa ansioso pela correia e arrasta a sua proprietária até o interior. “Isso acontece constantemente”, ri Hernández. O segredo das suas iguarias? São elaboradas com produtos naturais. “O animal as saboreia e são um complemento nutricional para as rações processadas, que têm muitas carências.” A alimentação é o setor que mais dinheiro movimenta nesse setor. Só na Espanha, o equivalente a 3,22 bilhões de reais por ano, segundo a consultoria Nielsen. Sonia Serra, estilista de 27 anos, compra menus especiais para seu galgo Buppy, que sofre de alergias alimentares. “Custa quatro vezes mais que uma ração de marca branca, mas compensa pelo que economizo em veterinários.” Ela e seu cônjuge destinam o equivalente a 5.500 reais por ano para manter o seu cão. A cifra praticamente dobra os 2.976 reais calculados pelo Ministério de Agricultura, e se aproxima cada vez mais da média norte-americana (7.286 reais).
O valor inclui atividades de lazer que acabam virando tendência, como o doga: ioga com cães. Surgiu há cinco anos em Nova York, pelas mãos da professora Suzi Teitelman, que reinterpretou a prática para incluir sua mascote. Seus vídeos online difundiram a doga pelo mundo todo. Em janeiro, Hong Kong bateu o recorde do Guinness com a aula mais numerosa da história (270 duplas dono-bicho). A educadora canina Patricia Guerrero importou a modalidade para um centro de ioga de Barcelona. “O objetivo é encontrar esse momento de conexão entre a pessoa e seu cão”, diz ela. Ao final da sessão, dono e animal permanecem abraçados em um aparente estado de relaxamento.
Biscoitos em uma confeitaria para pets em Madrí (Espanha) Felipe Hernández
Miguel Ibáñez, da Universidade Complutense, insiste que, apesar da boa intenção, essas novas atividades e serviços não deixam de ser “uma interpretação humana”. Algo que se evidencia também nos rituais pela morte do animal. Com mais de 284 milhões de mascotes na Europa, os crematórios abriram um nicho nesse mercado. “A Espanha começou um pouco mais tarde que seus vizinhos, mas agora abre um a cada semana”, diz Ruud van Beurden, gerente da Funeral Products Spain. A Cremascota surgiu em 2011 em Alcorcón (Madri). Numa tarde de sexta-feira, Raquel e Sergio Lázaro, irmãos e sócios do negócio, atendem os visitantes. Um de seus serviços-estrela são os velórios (40% dos clientes pedem). “Duram 30 minutos”, diz Sergio Lázaro, que trata os corpos. “Lavo, seco, penteio e o coloco no mostrador, como se estivesse dormindo.” Do outro lado do vidro, a família se despede. Pelo crematório passam entre 100 e 150 animais por mês. O preço oscila entre os 856 e 1.239 reais. Com um extra, é possível incluir lembrancinhas.
Outros preferem o enterro. A criação de cemitérios para mascotes remonta ao século XIX em cidades como Nova York (1896) e Paris (1899). Na Espanha, o primeiro só foi fundado em 1983. Num enorme pinheiral de Arganda del Rey (Madri), um letreiro anuncia: O Último Parque. Nos fins de semana, abre para as visitas. Entre os 33.000 metros quadrados de tumbas, um casal de aposentados, Isabel e Nicolás, retira as folhas secas que cobrem o jazigo de seu Tekkel. “Morreu há cinco anos. Ficou 16 conosco.” Sobre a lápide há um poema plastificado escrito por sua filha. A alguns metros dali, María José cola com celofane duas rosas frescas sobre a lápide da sua cachorrinha, como faz todos os sábados desde que ela morreu, há 21 meses. Os jazigos custam de 730 a 21.860 reais, em função do tamanho, localização e materiais usados. A taxa anual de manutenção é de 218 reais. Quando este recinto foi inaugurado, várias Prefeituras acharam que seus fundadores eram loucos. Hoje, são os Governos locais e regionais que propõem a criação destes cemitérios. Nos Estados Unidos, vão além. Em outubro, o Estado de Nova York aprovou uma norma que permite que animais sejam enterrados junto com seus donos. Outro sonho de Mar Ribé. “Guardo em casa as urnas com as cinzas de todos os meus animais. Espero que enterrem minhas cinzas com as deles.”

2. O debate. Sentimentos animais

Eles já são membros da família. Nas áreas urbanas, compartilhamos cada vez mais espaços com eles. Até onde podem chegar os seus direitos?
O filósofo Fernando Savater afirma que o pet acaba sendo um “reflexo do narcisismo do seu dono”. Sua humanização também não é um fenômeno recente, pois vem acontecendo ao longo de séculos. A novidade é que um terço dos espanhóis já considera seu cachorro ou seu gato como sendo mais importante do que seus amigos, segundo a Fundação Affinity, que defende o lugar dos animais na sociedade.
De onde vem essa febre pelas mascotes? O psicólogo norte-americano Harold Herzog, prestigiado pesquisador sobre o tema, a explica da seguinte forma: “Estamos cada vez mais sozinhos. As pessoas se casam tarde ou não o fazem, têm poucos filhos ou vivem por mais tempo. Essa solidão é maior nas cidades, distantes das comunidades rurais, onde as pessoas conhecem os seus vizinhos e vivem cercadas pela família”. Essa perda de contato com o campo e o surgimento de uma fauna urbana, composta principalmente por mamíferos domesticados, criaram um imaginário segundo o qual “a natureza é boa e pacífica”, segundo o filósofo Francis Wolff.
Os desenhos animados, o cinema e a publicidade potencializaram essa imagem. “Em um mundo comandado pelo sentimentalismo, acabamos transformando as mascotes em uma espécie de deuses bondosos”, acrescenta Savater. “Não esqueçamos que um animal nunca trai você, enquanto um amigo pode fazê-lo. Tampouco o julga. Para ele tanto faz que você seja uma faxineira ou o presidente da República”, afirma a professora Blanca Lozano em sua sala na Faculdade de Sociologia da Universidade Complutense de Madri, decorada com pôsteres de cachorros. Mas o akmor pelos animais, levado a situações extremas, pode comprometer o seu próprio bem-estar como espécie.
Fundadores da alfaiataria Caninetto com suas cadelas Felipe Hernández
“Temos de estar conscientes de que podemos lhe causar prejuízos físicos e psicológicos. Pouco tempo atrás, uma senhora me disse que o seu cachorro não gostava de cheiro de comida cozida”, comenta Carmen Castro, psicóloga especialista em comportamento canino. “Quando uma pessoa começa a dizer coisas desse tipo, é preciso acender o sinal amarelo”. Ela não faz os seus pacientes se sentarem em uma poltrona de couro novinha em folha. Suas consultas são dadas em um terreno baldio no subúrbio de Getafe, onde cerca de vinte cachorros se divertem. Uma das principais doenças de seus pacientes é a ansiedade decorrente da separação. “Estamos tão dependentes deles que quando os deixamos sozinhos eles passam mal”. Na entrada do local, um cartaz branco com letras azuis traz escrito o nome Hydra, associação de apoio e terapia com animais, na qual Castro trabalha ao lado de uma etóloga e de uma socióloga.
Em uma manhã de outono, Isabel María Pérez, estudante de contabilidade e finanças, comparece à Hydra para pegar seu cachorro. Estão separados há 15 dias, por determinação médica. A jovem, de 21 anos, não aguentava mais o comportamento agressivo de Darko. “Como todo mundo, eu humanizei o cão. Nós o tratávamos como se ele fosse um rei: comia na mesa a com a gente, dormia debaixo da nossa cama. Quando não conseguia ter o que queria, começava a latir. E assustava as pessoas”. Segundo a Fundação Affinity, os problemas de comportamento se tornaram um dos motivos mais recorrentes para o abandono de animais na Espanha. Somente no ano passado, as sociedades protetoras recolheram quase 138.000 cães e gatos. “É elementar entender as necessidades de cada espécie”, lembra Alex Kacelnik, professor de ecologia do comportamento animal da Universidade de Oxford. Ainda mais quando se trata de um exemplar exótico. “As pessoas já estão vivendo até com aranhas. É curioso, porque quanto mais distante o animal for da nossa escala biológica, maior será a dificuldade para se relacionar com ele”, argumenta Miguel Delibes de Castro, ex-diretor da Estação Biológica de Doñana. A moda de passear com um porco vietnamita como o de George Clooney pode simbolizar um status social. “O animal é visto como uma coisa sua, uma propriedade. E, como qualquer outro bem, pode se tornar um sinal de riqueza”, afirma a antropóloga mexicana Ana Cristina Ramírez.
Em países como os Estados Unidos, há um número de mascotes (305 milhões) próximo do número de habitantes (324 milhões). Cerca de 75 milhões de lares europeus possuem animais de estimação. Na América Latina, o boom apenas começou: somente Brasil, México, Argentina e Chile contabilizam, juntos, 200 milhões, segundo a consultoria Euromonitor (ver gráfico). “Na maioria das sociedades ocidentais, nossas necessidades básicas estão garantidas. As pessoas começam a lutar por outras causas, como pode ser a defesa dos animais”, observa Jesús Zamora Bonilla, professor de filosofia do direito da UNED.
Os especialistas em direito animal defendem, no entanto, que a própria ciência é que constatou que os animais são seres sensíveis, razão pela qual é necessário, sim, estabelecer normas mais adequadas às suas necessidades. Acordos como o de Lisboa ou o próprio Código Cicil da França já os reconhecem como “seres vivos sensíveis à dor”. A Espanha ainda não deu esse passo, mas endureceu as penas por maus tratos na última reforma de seu Código Penal. O vertiginoso desenvolvimento dessa área judicial fez surgirem tribunais que já deram habeas corpus (instrumento jurídico que reconhece o direito de não ser privado de liberdade sem que haja uma acusação formal) e vários macacos. A última que obteve esse direito humano foi Cecilia, um chimpanzé de um zoológico da Argentina. “ O conhecimento científico a respeito da proximidade genética dos animais diminuiu a distância existente entre eles e nós”, afirma Pablo de Lora, professor de filosofia do direito da Universidade Autônoma de Madri. Essa aproximação faz com que seja crescente o número de pessoas que defendem que não é ético comer produtos derivados dos animais, como mostra o grande aumento da opção vegana.
Fundadores da alfaiataria Caninetto com suas cadelas. Elas experimentam as suas criações, para ver se são confortáveis Felipe Hernández
Laia Bollo, secretária do Partido Animalista contra os Maus Tratos a Animais (PACMA), responde à mensagem de uma senhora que lhe pergunta como fazer uma denúncia anônima de exploração animal. “É impossível. Você precisa se identificar”, diz ela, com Gertrudis, sua cadelinha da raça shih tzu, apoiada nos seus pés. Sua mesa está localizada na recepção da sede do partido animalista, um apartamento de 65 metros quadrados no número 11 da rua de Preciados, no centro de Madri. Na entrada, um enorme cartaz exibe o logo do partido, ilustrado com a silhueta de um touro e um passarinho verde. “Você talvez não se recorde, mas anos atrás o distintivo trazia um touro ensanguentado. Decidimos alterá-lo, para transmitir uma imagem mais suave”, conta Laura Duarte, que cuida da comunicação desse partido fundado em 2003 e que foi ganhando espaço à medida que crescia o sentimento animalista. Se nas eleições gerais de 2008 eles obtiveram perto de 45.000 votos, em 2016 esse total ultrapassou 286.000. Seus pontos fortes são as grandes cidades, onde reina a mascotemania e sua presidente, Silvia Barquero observa que ainda há muito por fazer: habilitar mais zonas de estacionamento canino, conscientizar as pessoas quanto à adoção de animais e não limitar o horário de acesso ao metrô para os cachorros. Os Governos locais enfrentam o desafio de conciliar os anseios daqueles que querem compartilhar os espaços públicos com as mascotes e os que não querem nem sequer ouvir falar nessa possibilidade, cansados daquilo que consideram ser uma imposição cada vez mais invasiva.
Em capitais como Berlim, onde habitam raposas, guaxinins e um sem-número de espécies nos espaços verdes, a Prefeitura já conta com um “oficial da fauna selvagem”. Derk Ehlert exerce este cargo com diplomacia. Sua tarefa é fazer a mediação entre moradores humanos e... não humanos. “Recebemos muitas queixas por causa do barulho das raposas ou pelos danos causados nos jardins, mas, em geral, a cidade é muito tolerante”, explica Ehlert, de Berlim. Os ruídos dos cachorros nas residências e, sobretudo, a praga dos excrementos caninos estão entre as coisas que mais irritam os urbanistas espanhóis. Um problema que as autoridades parecem ter renunciado a enfrentar. A Polícia Municipal de Madri aplicou em 2015 apenas 23 multas, que oscilam entre 750 e 1.500 euros (2.700 e 5.400 reais). Em 2016 o total até agora é de 40. A justificativa para tão escasso número é a dificuldade de apanhar os infratores em flagrante. Estas cifras se incluem entre os milhares de denúncias que a polícia madrilena contabiliza por infrações cometidas com o animal doméstico. No ano passado foram 3.071. O delito mais frequente é o de maltrato.
Cemitério de animais, inaugurado em Madri em 1983 Felipe Hernández
A capital da Espanha se propôs seguir o exemplo de outras grandes cidades europeias e levar a natureza ao asfalto. Uma das medidas de seu ambicioso plano de biodiversidade será utilizar um terreno da Casa de Campo para a pastagem de ovelhas, assim não será mais necessário capinar a área e haverá uma aproximação dos animais com a cidade. Um fato absurdo para os críticos, e que Silvia Barquero, presidenta da PACMA, apoia com reservas. “Sobre acabar com a tauromaquia pouco falam”, observa. O último dos partidos a se unir ao filão animalista foi o Cidadãos, que pediu ao Governo central que modificasse o regime jurídico dos animais domésticos para que deixem de ser considerados “bens patrimoniais”. Uma medida que a PACMA reivindica há anos para pôr fim aos maus-tratos.
Por outro lado, o radicalismo de algumas campanhas em prol dos animais impede às vezes um debate tranquilo para abordar esta complexa relação entre humanos e outras espécies. Negar esta nova realidade tampouco ajuda. Modelar a mascote à nossa imagem e semelhança, menos ainda: “Se humanizar o animal quer dizer colocar lacinhos no pelo, pouco contribuímos para seu bem-estar”, diz Peter Singer, pai do ativismo em prol dos animais. Esta luta pode então ser relacionada com o progresso do humanismo? O filósofo francês Francis Wolff alerta: “Nunca fomos tão sensíveis ao sofrimento animal e tão indiferentes ao sofrimento humano”.