Daniele Giglioli questiona retórica vitimista e sua apropriação pelo populismo
Para autor italiano, prática serve mais ao ressentimento do que à emancipação de vítimas reais
Parece um contrassenso pensar que alguém possa almejar a condição de vítima, mas dizer-se vítima é uma das estratégias mais bem-sucedidas da política atual, diz o italiano Daniele Giglioli.
Professor de literatura comparada da Universidade de Bergamo, esteve no Brasil para falar do livro "Crítica da Vítima", em que combina erudição acadêmica e brio de polemista para defender a tese de que aquilo que chama de "dispositivo vitimário" é um traço fundamental do nosso tempo.
Em lugar das ambições de emancipação e transformação que caracterizam a modernidade, Giglioli defende que hoje é a retórica da vitimização que mais captura o imaginário social. Foi explorando o ressentimento dos que se consideram vítimas do sistema que Donald Trump e a coalização liderada por Giuseppe Conte na Itália se elegeram.
O triunfo do vitimismo estaria ligado ao retorno de afetos políticos de implicações catastróficas: Hitler e Mussolini chegaram ao poder culpando os outros, diz. Agora, como à época, a popularidade do vitimismo teria ligações com a crise do regime democrático, a sensação de que há um fosso intransponível entre cidadãos e elites políticas e financeiras.
Mas o que dizer dos grupos oprimidos, para os quais afirmar a condição de vítima pode ser um meio de combater a injustiça? Ainda aí, no que é o ponto mais delicado de sua obra, Giglioli sugere que a "retórica vitimária" serve mais ao ressentimento do que à emancipação. Leia sua entrevista à Folha.
O sr. abre o livro com a frase: "A vítima é o herói de nosso tempo". Em seguida, associa o heroísmo à ideia moderna de emancipação. Como essa ideia deu lugar ao que chama de discurso vitimário?
Por heroísmo da modernidade refiro-me a uma postura, uma atitude, resumida no lema de Kant: caminhar ereto, sair do estado de menoridade. A modernidade havia imposto ao sujeito tarefas gravosas: tens a obrigação de mudar as coisas.
O mito central da modernidade foi a revolução, não necessariamente entendendo-a como tomada do poder violento, mas o direito e o dever estendidos a todos, e não só aos grandes da história, de modificar o estado das coisas.
A vítima tomou o lugar do herói nesse sentido; sendo uma figura da passividade, oferece ao sujeito a possibilidade de identificação mais realista em uma sociedade na qual o senso de impotência é a tonalidade emocional mais difusa.
Já não podemos mais tanto. Outros decidem por nós (mercado, governos, aparatos de inteligência). Sentir-se vítima permite ao menos dizer que, se não podemos, tampouco devemos. Uma vítima não deve nada, não tem obrigações. Declarar-se vítima é uma maneira de habitar o estado de menoridade sem sentir culpa por isso.
O sr. toma o cuidado de explicar que "crítica" não quer dizer "ser contra" e que seu livro questiona certo uso atual da noção de vítima, e não as vítimas reais. Pode explicar?
Crítica, dizia Kant, não significa ir contra alguém, mas tentar estabelecer o uso correto da razão, o que faz sentido e o que não faz sentido dizer.
Obviamente, não tenho nada a repreender nas vítimas reais. Pretendo submeter à crítica, à verificação, um discurso que coloca a vítima no centro do universo da ética, pretendendo extrair um possível bem do que é indiscutivelmente um mal, algo indesejável.
Como alguém pode buscar um fundamento não em um bem (Deus, liberdade, igualdade etc.), mas em algo que é indesejável?
Não prescrevo receitas a ninguém, tampouco às vítimas reais, que têm direito ao nosso respeito e ao reconhecimento da condição dolorosa em que foram colocadas sem que tivessem culpa.
Penso que a reivindicação da própria condição de vítima não é a melhor estratégia de empoderamento. Pode dar vantagens discursivas, prometer visibilidade, mas, ao mesmo tempo, aprisiona fatalmente quem sofreu uma injustiça àquela injustiça, liga-o definitivamente ao passado.
Uma vítima é alguém que tem destino e identidade decididos por outro. Por que também presentear o algoz com seu futuro?
A vítima que se emancipa não cancela o passado, mas não se reduz a ele.
Embora o sr. dê mais ênfase ao uso da noção de vítima por poderosos, que buscam explorar o ressentimento e se eximir de sua responsabilidade, parece que, mesmo no caso dos oprimidos, o sr. considera problemático o uso dessa figura da vítima, não?
O vitimismo dos poderosos está sob os olhos de todos e também a capacidade que eles têm de utilizá-los para seus próprios fins. Como Trump venceu as eleições?
Mais delicado é o uso da retórica vitimária por grupos submetidos à discriminação, antiga ou presente, mas real. Ali não há má-fé. A ênfase colocada sobre o mal recebido de outros não torna os sujeitos preguiçosos em relação à fabricação e reivindicação dos próprios méritos, porque eles, e não as feridas, são as únicas coisas de que se orgulhar.
A exemplo, o movimento operário. Na retórica dele, em especial no século 19, não era completamente ausente um pauperismo vitimário, focado no sofrimento e na pobreza.
Mas muito mais forte e decisivo foi o impulso que veio da consciência de que, numa sociedade industrial, a riqueza é fundada no trabalho: "Somos nós que produzimos este mundo. Então, se vocês não se importam, nós não queremos só uma fatia maior de bolo, mas o direito de guiá-lo, governá-lo, mudá-lo. Nós não queremos compaixão ou assistência, queremos o poder".
Agora tudo mudou, mas, enquanto tal consciência foi presente, funcionou. Quase todas as conquistas sociais e civis no Ocidente passaram por ela.
O que o sr. acha do #MeToo? Não seria possível ver aí um efeito emancipador do ato de se dizer publicamente vítima?
Que a cultura patriarcal tenha a tendência a dar como certo o consentimento da mulher, ou o direito de não levá-lo em consideração, é uma evidência. Inaceitável, indefensável. O patriarcado é intelectualmente exaurido, não pode ser defendido por nenhum argumento decente. Vai levar tempo, mas é a direção em que vamos, felizmente.
Em relação ao #MeToo, minha perplexidade se dá pelo fato de o movimento ter-se iniciado em Hollywood e que os promotores fossem mulheres ricas, famosas e poderosas, sabendo que o que sofreram, infelizmente, é a norma em escritórios, fábricas, lojas...
Não conheço na história uma verdadeira revolução iniciada por bilionários. Tenho muito medo do efeito glamour e de certa tendência à histeria coletiva, imitativa, característica do espírito público americano. Mas melhor que nada; ao menos se fala sobre isso.
O sr. inclui o populismo entre fenômenos ligados ao discurso vitimário. Isso se aplica à coalização que assumiu o poder na Itália?
Sim, infelizmente. Mas não menos populistas são os seus adversários, os líderes da esquerda e da dita direita moderada, Matteo Renzi e Berlusconi.
Sob estresse, todos os países reagem inconscientemente apelando para memórias ancestrais e fundacionais. Infelizmente para a Itália, elas são o fascismo, a grande contribuição italiana à modernidade política, um modelo de governo das massas tão funcional que pode ser aplicado a todas as latitudes, da Alemanha à América Latina. No Brasil vocês sabem algo disso.
O ressentimento é o combustível emocional mais forte do fascismo. Mussolini e Hitler chegaram ao poder culpando os outros. Também por isso a mitologia vitimária é perigosa, material radioativo que deve ser manuseado com extremo cuidado. Criticá-la não significa falta de respeito por vítimas reais, mas lutar para evitar que surjam outras.
STJ garante direito de visita a animal de estimação após separação
19 de junho de 2018, 18h50
Apesar de os animais serem classificados como “coisa” pelo Código Civil, é possível estabelecer a visitação ao bicho após o fim de um relacionamento quando o caso concreto demonstrar elementos como a proteção do ser humano e o vínculo afetivo estabelecido.
Maioria da 4ª Turma do STJ segue voto do ministro relator, Luis Felipe Salomão, e permite que marido visite o cachorro que ficou com a esposa após a separação. Sandra Fado
Com esse entendimento, a maioria dos ministros da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça garantiu o direito de um homem visitar a cadela Kim, da raça Yorkshire, que ficou com a ex-companheira na separação. O placar foi de três votos a dois.
O relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, afirmou que a questão não se trata de uma futilidade analisada pela corte.
Ele disse que, ao contrário, é cada vez mais recorrente no mundo pós-moderno e deveria ser examinada tanto pelo lado da afetividade em relação ao animal quanto como pela necessidade de sua preservação conforme o artigo 225 da Constituição Federal.
Com isso, a turma considerou que os animais, tipificados como coisa pelo Código Civil, agora merecem um tratamento diferente devido ao atual conceito amplo de família e a função social que ela exerce. Esse papel deve ser exercido pelo Judiciário, afirmou. Também foi levado em consideração o crescente número de animais de estimação em todo o mundo e o tratamento dado aos “membros da família”.
O ministro apontou que, segundo o IBGE, existem mais famílias com gatos e cachorros (44%) do que com crianças (36%). Além disso, os divórcios em relações afetivas de casais envolvem na esfera jurídica cada vez mais casos como estes em que a única divergência é justamente a guarda do animal.
Terceiro gênero “Longe de, aqui, se querer humanizar o animal”, ressaltou. “Também não há se efetivar alguma equiparação da posse de animais com a guarda de filhos. Os animais, mesmo com todo afeto merecido, continuarão sendo não humanos e, por conseguinte, portadores de demandas diferentes das nossas.”
O relator afirmou, em julgamento iniciado em 23 de maio, que o bicho de estimação não é nem coisa inanimada nem sujeito de direito. “Reconhece-se, assim, um terceiro gênero, em que sempre deverá ser analisada a situação contida nos autos, voltado para a proteção do ser humano, e seu vínculo afetivo com o animal.” O fundamento foi acompanhado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira.
O ministro Marco Buzzi seguiu a maioria, apesar de apresentar fundamentação distinta, baseada na noção de copropriedade do animal entre os ex-conviventes. Segundo ele, como a união estável analisada no caso foi firmada sob o regime de comunhão universal e como os dois adquiriram a cadela durante a relação, deveria ser assegurado ao ex-companheiro o direito de acesso a Kim.
A ministra Isabel Gallotti divergiu, considerando ideal esperar uma lei mostrando dias e horas certas de visita. O Judiciário, segundo ela, precisa decidir com base em algo concreto. “Se não pensarmos assim, haverá problemas como sequestro de cachorro, vendas de animal”, afirmou.
Último a votar, o desembargador convocado Lázaro Guimarães entendeu que a discussão não poderia adotar analogicamente temas relativos à relação entre pais e filhos. De acordo com o desembargador, no momento em que se desfez a relação e foi firmada escritura pública em que constou não haver bens a partilhar, o animal passou a ser de propriedade exclusiva da mulher.
Disputa de ex-companheiros por cadela yorkshire chegou ao STJ.
Com a tese definida pela maioria, o colegiado manteve acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que fixou as visitas em períodos como finais de semana alternados, feriados prolongados e festas de final de ano.
Anteriormente, o juízo de primeiro grau havia considerado que nenhum bicho poderia integrar relações familiares equivalentes àquelas existentes entre pais e filhos, “sob pena de subversão dos princípios jurídicos inerentes à hipótese”.
Repercussão O entendimento majoritário foi elogiado por advogados. Para Júlia Fernandes Guimarães, da área de Contencioso Cível do Rayes & Fagundes Advogados Associados, o STJ reconhece a “nova realidade” nas relações do Direito de Famíia, como já vêm fazendo tribunais estaduais, “visando atenuar o grande sofrimento gerado pela ausência do convívio diário com o animal”.
O advogado Luiz Kignel, especialista em Direito de Família e sócio do PLKC Advogados, afira que o bicho doméstico faz parte do núcleo familiar, sem ser membro da família.
“Não há fundamento jurídico — e na minha opinião também de razoabilidade — de atribuir ao animal o tratamento de guarda de filhos. Mas foi de muita sensibilidade conferir o direito de visitas regulares porque o relacionamento construído entre um cônjuge e o animal tem valor intangível que deve ser protegido”, analisa. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
REsp 1.713.167
* Texto atualizado às 19h e às 20h32 do dia 19/6/2018 para acréscimo de informações.
Revista Consultor Jurídico, 19 de junho de 2018, 18h50