RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA. PUBLICAÇÃO DE ARTIGO OFENSIVO À HONRA DOS POVOS INDÍGENAS. DANOS MORAIS COLETIVOS. CONDENAÇÃO EM VALOR IRRISÓRIO. MAJORAÇÃO. POSSIBILIDADE.
1. Ação civil pública por danos morais coletivos, ajuizada em 21/9/2009, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 1º/12/2020 e concluso ao gabinete em 30/11/2023.
2. O propósito recursal consiste em decidir se é irrisório e se deve ser majorado o valor arbitrado a título de indenização por danos morais coletivos em razão de publicação de artigo ofensivo à honra dos povos indígenas do Estado do Mato Grosso do Sul.
3. Não há ofensa aos arts. 489 e 1.022 do CPC quando o Tribunal de origem examina, de forma fundamentada, a questão submetida à apreciação judicial e na medida necessária para o deslinde da controvérsia, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte.
4. A fim de densificar a proteção constitucional estabelecida pelo art. 231 da CF/88, a Lei da Ação Civil Pública assegura a reparação por danos extrapatrimoniais causados em prejuízo à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos (art. 1º, VIII, da Lei nº 7.347/1985).
5. A jurisprudência desta Corte tem afastado a aplicação da Súmula 7/STJ e permitido a revisão do valor estabelecido pelas instâncias ordinárias a título de danos morais quando o montante é considerado irrisório ou abusivo.
6. O montante arbitrado pelas instâncias ordinárias pode ser considerado irrisório, pois insuficiente para alcançar as finalidades de punição, dissuasão e reparação, bem como se mostra desproporcional com a gravidade da conduta de escrever e divulgar, por meio da internet, artigo com caráter preconceituoso e incitador de ódio contra os povos indígenas do Estado do Mato Grosso do Sul.
7. Recurso especial conhecido e provido a fim de majorar o valor arbitrado a título de danos morais coletivos para R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) .
(REsp n. 2.112.853/MS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/2/2024, DJe de 7/3/2024.)
A jurisprudência do STJ após a Lei 14.230 e o tratamento prioritário dos casos de improbidade
A exigência de uma conduta honesta na administração de bens e interesses públicos remonta à Antiguidade: já no Código de Hamurabi, escrito no 18º século a.C., havia previsão de sanção ao juiz que conduzisse indevidamente um processo. Também a Lei das Dozes Tábuas, criada na Roma Antiga, estipulava que o juiz que recebesse dinheiro para julgar em favor de uma das partes deveria ser punido com a morte.
Ao longo da história, a probidade em funções públicas foi um princípio ampliado e renovado pelas leis nacionais. No Brasil, leis antigas, como o Código Criminal de 1830, traziam algumas sanções para o agente ímprobo (a exemplo de quem cometesse o crime de suborno), mas foi a partir da Constituição de 1988 que o conceito de improbidade administrativa ganhou seus atuais contornos.
Em atendimento ao comando doartigo 37, parágrafo 4º, da Constituição, o Brasil editou a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992). Tida como um marco histórico no combate aos atos ilícitos na administração pública, a norma sofreu alterações importantes com a edição daLei 14.230/2021. Entre as principais modificações, está a retirada da modalidade culposa para a configuração dos atos ímprobos.
A cobrança crescente da sociedade por uma administração pública guiada pelo interesse comum levou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a incluir nasMetas Nacionais do Poder Judiciário(Meta 4) a prioridade para o julgamento dos processos sobre crimes contra a administração e atos de improbidade administrativa.
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem dado especial atenção à análise desses casos, e, neste mês de abril,alcançou a marca de 75% de cumprimento da Meta 4(julgar, até o fim do ano, 90% dos processos distribuídos até 2022).
Os entendimentos adotados pelo STJ sobre improbidade administrativa, especialmente após a edição da Lei 14.230/2021, são o tema da edição 234 deJurisprudência em Tesese também desta reportagem especial.
Aplicação retroativa da Lei 14.230/2021 é limitada
Segundo a jurisprudência mais recente do STJ, a retroatividade das alterações trazidas pela Lei 14.230/2021 é restrita aos atos de improbidade culposos praticados na vigência da norma anterior, sem condenação transitada em julgado.
Conforme explicou o ministro Benedito Gonçalves noAREsp 1.877.917, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar oTema 1.199, estabeleceu que a Lei 14.230/2021 se aplica aos atos ímprobos culposos praticados na vigência do texto anterior da Lei de Improbidade, porém sem condenação transitada em julgado, tendo em vista a revogação expressa dos dispositivos anteriores sobre o tema.
Sobre o mesmo assunto, o STJ tem considerado possível a aplicação retroativa da Lei 14.230/2021 aos atos de improbidade culposos sem trânsito em julgado, inclusive na hipótese denão conhecimentodo recurso, ou seja, quando o recurso não ultrapassa a etapa do juízo de admissibilidade.
Indisponibilidade de bens exige demonstração de urgência da medida
Decisões recentes do STJ também definiram que, a partir da vigência da Lei 14.230/2021, o deferimento da indisponibilidade de bens emação de improbidade administrativadepende da demonstração de urgência da medida.
Em recurso do Ministério Público do Rio Grande do Norte noAREsp 2.272.508, o ministro Gurgel de Faria apontou que, com a edição da nova Lei de Improbidade, o requisito de urgência passou a ser exigido ao lado da necessidade de indicação da plausibilidade do direito alegado.
O ministro também destacou que a decisão de indisponibilidade de bens tem caráter processual e natureza detutela provisória de urgência– podendo, portanto, ser revogada ou modificada a qualquer tempo –, de modo que, nos termos do artigo 14 do Código de Processo Civil de 2015, a Lei 14.230/2021 tem aplicação imediata ao processo em curso.
Não é possível condenação genérica baseada em incisos revogados
Os colegiados de direito público do STJ também têm entendido que, com a nova redação do artigo 11 da Lei de Improbidade – que tipificou de forma taxativa os atos ímprobos por ofensa aos princípios da administração pública –, não é possível a condenação genérica com base nos revogados incisos I (ato visando a fim proibido em lei ou regulamento) e II (retardar ou deixar de praticar, indevidamente, atode ofício), em relação aos atos praticados na vigência do texto anterior da lei e sem a condenação transitada em julgado.
A condenação com base em genérica violação a princípios administrativos, sem a tipificação das figuras previstas nos incisos do artigo 11 da Lei 8.429/1992 – ou, ainda, quando condenada a parte ré com base nos revogados incisos I e II do mesmo artigo, sem que os fatos tipifiquem uma das novas hipóteses previstas na atual redação do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa –, remete à abolição datipicidade da conduta e, assim, à improcedência dos pedidos formulados na inicial.
AREsp1.174.735
Ministro Paulo Sérgio Domingues
No julgamento doAREsp 1.174.735, o ministro Paulo Sérgio Domingues afirmou que o panorama normativo da improbidade administrativa sofreu alterações significativas após a Lei 14.230/2021 – legislação que, em diversos pontos, representou verdadeira lei nova mais benéfica ao réu (novatio legis in mellius).
No caso analisado, diante do novo cenário legal, o ministro considerou desnecessário o retorno dos autos às instâncias de origem para reanálise, tendo em vista que não havia mais embasamento legal para a qualificação da conduta do agente público como ímproba.
Improbidade se mantém se novo texto tiver apenas modificado inciso que prevê a conduta
Ainda em relação à caracterização do ato ímprobo, o STJ já se manifestou no sentido de que não é possível afastar a acusação de improbidade se a conduta não foi completamente abolida da legislação, mas apenas teve alterada a sua especificação pelo novo texto legal.
O entendimento foi aplicado noAREsp 1.206.630, no qual se discutiu a improbidade decorrente de promoção pessoal do agente público em atos de uma prefeitura.
Segundo o ministro Paulo Sérgio Domingues, a alteração feita nocaputdo artigo 11 da Lei 8.429/1992, que passou a exigir que o reconhecimento do ato de improbidade por violação aos princípios administrativos ocorra com a indicação de uma das condutas previstas nos seus incisos, não alterou a caracterização do ato de improbidade. De acordo com o relator, a conduta do agente passou a ser enquadrada no inciso XII do artigo 11.
"Não obstante a abolição da hipótese de responsabilização por violação genérica aos princípios administrativos, anteriormente prevista nocaputdo artigo 11 da Lei 8.249/1992, a novel previsão, entre os seus incisos, da conduta considerada noacórdãocomo violadora dos princípios da moralidade e da impessoalidade evidencia verdadeira continuidade típico-normativa", reforçou o ministro.
Absolvição por falta dedolona ação de improbidade tem impacto na esfera penal
Entendimentos recentes do STJ também trataram de outros temas importantes sobre a improbidade administrativa, a exemplo da ausência deforo por prerrogativa de funçãona instauração de inquéritos civis ou nas ações de improbidade, tendo em vista que esses procedimentos não têm natureza criminal.
Outra posição definida nos últimos anos foi a de que, no julgamento daação de improbidade administrativa, a absolvição por ausência dedolona conduta do agente público e de obtenção de vantagem indevida esvazia a justa causa para a manutenção daação penal.
Não é possível que odoloda conduta em si não esteja demonstrado no juízo cível e se revele no juízo penal, porquanto se trata do mesmo fato, na medida em que a ausência do requisito subjetivo provado interfere na caracterização da própriatipicidadedo delito, mormente se se considera a doutrina finalista (que insere o elemento subjetivo no tipo), bem como que os fatos aduzidos nadenúncianão admitem uma figura culposa, culminando-se, dessa forma, em atipicidade.
RHC173.448
Ministro Reynaldo Soares da Fonseca
Em um desses precedentes (RHC 173.448), o ministro Reynaldo Soares da Fonseca comentou que, embora haja independência entre as esferas civil, penal e administrativa, é necessário que a instância penal considere os fundamentos contidos na decisão que absolveu o agente emação de improbidade administrativa.
No caso analisado, na visão do ministro, tendo a instância cível concluído que os réus não induziram ou concorreram para a prática de ato contrário aos princípios da administração, "não pode a mesma conduta ser violadora de bem jurídico tutelado pelo direito penal".
É possível homologação de acordo de não persecução cível na fase recursal
Em precedentes recentes, o STJ também reforçou o entendimento de que a contratação de servidores públicos temporários sem concurso público, quando baseada em legislação local, não configura, por si só, o ato de improbidade administrativa previsto no artigo 11 da Lei 8.429/1992. Nessa situação, de acordo com os precedentes (a exemplo doREsp 1.930.054–Tema Repetitivo 1.108), não estaria presente odolonecessário para a configuração da improbidade.
Segundo o STJ, também não caracteriza ato de improbidade a falta de repasse, pelo prefeito, de informações solicitadas pelo Poder Legislativo ou por outros interessados, quando não há evidência de malícia ou desonestidade na omissão.
Julgados recentes das duas turmas de direito público do STJ, além da Primeira Seção, também admitiram a homologação judicial de acordo de não persecução cível emação de improbidade administrativaque esteja em fase recursal. A homologação de um desses acordos, inclusive, ocorreu no STJ, no âmbito doEAREsp 1.831.535.