sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Sem Abandonar Ideologias Políticas, Não Haverá Solução para a Segurança Pública no Brasil

 Sem Abandonar Ideologias Políticas, Não Haverá Solução para a Segurança Pública no Brasil

O Brasil vive um paradoxo desconcertante. Enquanto o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho demonstram capacidade de coordenação estratégica — estabelecendo acordos operacionais, dividindo territórios quando conveniente e atuando em parceria para maximizar lucros —, o Estado brasileiro permanece fragmentado por disputas ideológicas, conflitos corporativos e uma crônica incapacidade de articulação entre suas próprias forças. O crime organizado age como empresa; o Estado se comporta como federação de feudos em guerra perpétua.

A desunião começa no topo. A União e os estados mantêm relações tensas, frequentemente paralisadas por divergências ideológicas entre governos que se identificam como de direita ou de esquerda. Mas a fragmentação não para aí e se aprofunda dentro dos próprios estados. Polícia Militar e Polícia Civil disputam protagonismo e esferas de poder. Ministérios Públicos e forças policiais entram em conflito motivados por embates de ego e disputas de competência. Enquanto isso, facções criminosas operam com clareza de objetivos e eficiência logística invejável para qualquer gestor público sério.

Na manhã de ontem, 28 de outubro de 2025, a chamada Operação Contenção mobilizou 2.500 agentes de segurança nos complexos do Alemão e da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro. O balanço oficial contabilizou 64 mortos — 60 supostos criminosos e quatro policiais. No entanto, moradores retiraram dezenas de corpos adicionais de áreas de mata durante a madrugada, levando-os à Praça São Lucas para que famílias pudessem reconhecê-los. O número real de mortes pode ter ultrapassado 120 pessoas, transformando a operação na mais letal da história do estado.

O governo estadual classificou a ação como "sucesso". O problema é que o principal alvo da operação não foi capturado e o tráfico continua dominando a região. Foram presos 81 suspeitos e apreendidos 93 fuzis, mas o território permanece sob controle da facção criminosa. É necessário lamentar profundamente as quatro vidas de agentes públicos perdidas no cumprimento do dever e reconhecer o sofrimento de suas famílias. Mas não podemos ignorar que outras dezenas — possivelmente mais de uma centena — de pessoas morreram, muitas delas com famílias que também choram, algumas envolvidas com o tráfico, outras não, mas todas vivendo naquele território. As imagens da operação circularam pela mídia internacional, expondo ao mundo a dimensão da tragédia.

Quando uma autoridade chama de sucesso uma operação que não capturou seu principal alvo, não modificou o controle territorial exercido pelo crime organizado e deixou um rastro de mais de cem mortos, algo está profundamente errado. Precisamos ter honestidade intelectual para reconhecer quando uma estratégia é falha, quando está funcionando e quando não está. Não vamos solucionar o problema do crime organizado nem recuperar territórios dominados com operações dessa natureza. Não se consegue fazer algo diferente repetindo absolutamente os mesmos erros do passado.

Dois meses antes, em agosto de 2025, o Brasil testemunhou a maior operação contra o crime organizado de sua história — mas de uma natureza completamente diferente. A Operação Carbono Oculto, conduzida em conjunto pela Polícia Federal, Ministério Público de São Paulo, Receita Federal e Receita Estadual, mobilizou 1.400 agentes para cumprir 350 mandados de busca e apreensão em dez estados. O foco era desarticular a estrutura financeira do PCC, que havia infiltrado o mercado de combustíveis e o sistema financeiro formal.

As investigações revelaram um esquema de proporções assombrosas. Organizações criminosas movimentaram dezenas de bilhões de reais através de uma rede de postos de combustíveis. Mais impressionante ainda: a facção controlava 40 fundos de investimento sediados na Avenida Faria Lima, coração do mercado financeiro brasileiro, com patrimônio total de 30 bilhões de reais. Esses fundos eram utilizados para blindagem patrimonial, ocultação da origem de recursos ilícitos e financiamento de atividades criminosas em larga escala. O esquema funcionava através de fintechs que operavam como bancos paralelos, aproveitando-se de brechas regulatórias e dificultando enormemente a fiscalização.

O resultado da Operação Carbono Oculto? Zero mortes. Nenhum policial ferido, nenhum suspeito morto. Foram cumpridos mandados em escritórios na Faria Lima sem confrontos, sem tiroteios, sem barricadas incendiadas. E o impacto no crime organizado foi devastador. Ao atingir a estrutura financeira do PCC, a operação feriu a capacidade operacional da organização de forma muito mais profunda e duradoura do que qualquer confronto armado jamais conseguiria. O dinheiro é o oxigênio do crime organizado. Cortar o fluxo financeiro equivale a sufocar lentamente a estrutura criminosa.

O contraste entre as duas operações não poderia ser mais claro. No Rio de Janeiro, uma megaoperação com 2.500 agentes resultou em mais de 120 mortos, não capturou o principal alvo e não modificou o controle territorial da facção. Na Faria Lima, uma operação baseada em inteligência, investigação minuciosa e articulação entre órgãos resultou em zero mortes e desmantelou a estrutura financeira bilionária do crime organizado. A pergunta que fica é simples: qual dessas estratégias realmente funciona?

Enquanto debates ideológicos paralisam ações coordenadas, temos um problema grave de soberania em pontos estratégicos do território nacional. A região amazônica, especialmente a chamada Rota dos Solimões — corredor fluvial que atravessa a tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru — consolidou-se como uma das principais vias de escoamento de drogas do país. Relatórios da Agência Brasileira de Inteligência documentam o crescimento exponencial das facções criminosas na região ao longo dos últimos anos. O Comando Vermelho estabeleceu hegemonia sobre essas rotas, eliminando grupos rivais e diversificando negócios para incluir garimpo ilegal de ouro e extração de madeira em territórios protegidos e terras indígenas.

A vastidão territorial, os rios navegáveis e as pistas clandestinas criam múltiplas rotas que favorecem o trânsito não apenas de drogas, mas também de ouro ilegal e outros produtos criminosos. A densa cobertura florestal e os trechos remotos permitem que grupos armados operem fora do alcance das forças de segurança. As autoridades estaduais da região são diretas ao diagnosticar o problema: é necessária uma ação mais incisiva das forças federais, especialmente das Forças Armadas, no combate ao crime organizado. O Brasil parece estar de costas para sua própria fronteira. Governos estaduais investem recursos mensais significativos na manutenção de bases fluviais de policiamento, mas o montante é considerado insuficiente frente à dimensão e complexidade da região. Trata-se de uma questão de soberania nacional que exige governança pública coordenada entre União, estados e Forças Armadas.

A Operação Carbono Oculto revelou algo que deveria ser óbvio: segurança pública não se faz apenas com polícia. A Receita Federal e as Receitas Estaduais precisam ser incorporadas ao aparato de segurança pública de forma orgânica e permanente. O crime organizado entendeu há muito tempo que sua sobrevivência depende de diversificar e sofisticar operações financeiras. O Estado precisa acompanhar essa evolução ou continuará eternamente um passo atrás.

O combate efetivo ao crime organizado exige uma visão ampliada que incorpore órgãos de controle fiscal, agências reguladoras do mercado financeiro, órgãos de controle ambiental, agências de inteligência e instituições de fiscalização econômica. É necessário reconhecer que crime organizado em 2025 é, antes de tudo, um empreendimento financeiro sofisticado que explora brechas regulatórias e fragilidades institucionais.

O Ministério Público Federal e os Ministérios Públicos estaduais têm a capacidade institucional para coordenar essa governança integrada, articulando diferentes órgãos em estratégias conjuntas. Mas isso só funciona se houver vontade política real de superar disputas corporativas, vaidades institucionais e, principalmente, divisões ideológicas que transformam a segurança pública em palanque eleitoral. Enquanto governos de direita e de esquerda se recusam a trabalhar juntos, enquanto União e estados mantêm relações tensas por questões partidárias, o PCC e o Comando Vermelho seguem operando com eficiência corporativa.

Segurança pública precisa ser tratada e manejada a partir de dados e evidências empíricas, não de convicções ideológicas ou narrativas políticas convenientes. Várias cidades brasileiras implementaram programas baseados em evidências e conseguiram reduzir significativamente a criminalidade. Precisamos identificar o que funciona e replicar essas experiências, adaptando-as às realidades locais. Mais importante ainda: precisamos ter humildade para abandonar estratégias que comprovadamente não funcionam, por mais que sejam politicamente populares.

O Rio de Janeiro pode exigir uma solução específica, dada a complexidade geográfica que dificulta operações contra organizações criminosas, o tamanho das comunidades envolvidas e o número de pessoas que vivem nesses territórios. Mas a diretriz fundamental permanece inegociável: onde o Estado não está presente de forma efetiva e permanente, as organizações criminosas ocupam esse espaço inevitavelmente. A reconquista de territórios dominados pelo crime organizado não passa por operações militarizadas que deixam rastros de dezenas de mortos sem alterar a realidade no terreno. Passa pela presença efetiva e permanente do Estado, não apenas com força policial, mas com serviços públicos, oportunidades reais de geração de renda, educação de qualidade e dignidade para populações historicamente abandonadas.

O crime organizado no Brasil é sofisticado, capitalizado e pragmático. Movimenta bilhões de reais, controla fundos de investimento na Faria Lima, domina rotas de tráfico internacional, diversifica operações em múltiplos setores da economia ilegal e legal. Enquanto o Estado brasileiro permanecer dividido por ideologias políticas, disputas corporativas e vaidades institucionais, lutando contra si mesmo com mais empenho do que luta contra o crime organizado, não haverá solução possível.

A Operação Carbono Oculto demonstrou que é possível atingir o crime organizado de forma devastadora sem disparar um único tiro. A Operação Contenção demonstrou que é possível mobilizar 2.500 agentes, causar mais de 120 mortes e não mudar absolutamente nada na realidade local. 

É necessário um pacto nacional que coloque a segurança pública acima de bandeiras partidárias. Precisamos reconhecer nossos erros com honestidade, aprender com os raros sucessos, ampliar o conceito de segurança para incluir o combate sistemático à estrutura financeira do crime, garantir a soberania das fronteiras com presença efetiva das Forças Armadas e órgãos de inteligência, e principalmente construir uma presença estatal permanente onde hoje só existe ausência e oportunidade para o crime.

A escolha é clara e as evidências são incontestáveis. Podemos continuar repetindo os erros do passado, celebrando operações letais como "sucesso" enquanto o crime organizado controla territórios e acumula bilhões. Ou podemos ter a coragem de mudar radicalmente a estratégia, priorizando inteligência sobre força bruta, cooperação sobre disputa ideológica, presença permanente sobre operações espetaculares, e deixando para trás — finalmente — as ideologias políticas que impedem soluções efetivas para a segurança pública no Brasil. A realidade não negoceia com narrativas políticas. O crime organizado entendeu isso há muito tempo. Quando o Estado brasileiro vai entender?