sexta-feira, 3 de outubro de 2014

E a família brasileira ...

artigo publicado no Jornal O Globo hoje ...

Pela família!

Aposto uma passagem de ônibus que, passados um ano e quatro meses das manifestações de junho de 2013, a palavra mais repetida na propaganda eleitoral foi “família” e não “mudanças”. Não foram apenas os candidatos da bancada religiosa que a pronunciaram. Ela esteve na boca de muitos políticos notoriamente laicos.
Uma “defesa da família” tornou-se, no discurso diversionista, mais importante do que o recato no uso do dinheiro público, o investimento inteligente em educação, o saneamento da saúde pública, o desatamento dos nós do transporte urbano, a criação de uma política de segurança civil... O grande problema do Brasil é defender a família.
Não é nem espantoso nem surpreendente. O político brasileiro é muito ligado à família. A própria família, claro. Pense nos “ficha suja” que, tardia mas merecidamente, foram impedidos pela Justiça de disputar as eleições e transferiram sua missão cívica a suas excelentíssimas esposas. Isso é tão naturalizado aqui que, ainda que não estejam envolvidos laços de sangue, falamos em “afilhados” ou “herdeiros” políticos.
Levantamento divulgado pela ONG Transparência Brasil em junho último deu números a todo esse amor familiar: entre os eleitos em 2006 e 2010, 44% dos deputados federais e 64% dos senadores têm parentes na política, sem contar a cota de assessores. Dependendo do recorte, os índices aumentam. Na Câmara, o DEM tem 67% e o PMDB, 64% de gente, hum, “familiarizada” com a política. No Senado, os campeões são PP (100%), PSDB (82%) e PMDB (78%). No Nordeste, 60% dos deputados e 70% dos senadores defendem o leite das crianças. Até o PT — Partido dos Trabalhadores, não custa lembrar — tem 17% de deputados federais e 54% de senadores, hum, “afiliados”.
Qualquer “renovação” se dá majoritariamente dentro dos próprios clãs. Entre os deputados com menos de 40 anos, 64% são parentes de políticos. Entre os deputados que têm menos de 30 anos, o número sobe para 78%. Seria antidemocrático impedir alguém de entrar para a política por conta de seupedigree. Há bons políticos “de berço”. São exceções. Na prática, temos é uma oligarquia legislando em causa própria. É óbvio que ela prega a defesa da família e rechaça as mudanças.
Entretanto, não estamos diante de epidemia de sincericídio na classe política. O que ela sabe fazer bem é contrabandear interesses privados no meio do interesse público. Afinal, o Brasil é um país conservador. Os três candidatos mais bem colocados nas pesquisas de intenção de voto para a presidência da República são por convicção ou por conveniência conservadores, ao menos no que tange aos costumes. Sua resposta (tardia) ao discurso homofóbico de um colega nanico foi um ponto fora da curva.
Os políticos da bancada religiosa têm — ou acham que têm — outras razões para se posicionar “em defesa da família”. Acreditam que ela está sob ataque porque existe a proposta de aprovação do chamado casamento gay, com cônjuges do mesmo sexo assumindo compromissos recíprocos iguais aos dos cônjuges de sexos diferentes. Francamente, não consigo entender como o desejo de constituir família pode ameaçar a família, mas deve ser um problema comigo, pois também não entendo o que alguém tem a ver com o que dois outros adultos fazem sozinhos entre quatro paredes.
A proposta de que um assunto como a união civil entre pessoas do mesmo sexo seja submetido a um plebiscito nacional é falsamente democrática. Ela colocaria a maioria para decidir como a minoria deve se portar em sua vida privada. Tal intromissão é própria de regimes totalitários laicos ou de teocracias.
O “em defesa da família” marcha lado a lado com um “em defesa da vida”, outro bordão de inspiração religiosa compartilhado por laicos oportunistas. Aqui, o alvo é a eventual legalização do aborto até determinado ponto da gestação. Há na atual proibição a ideia subjacente de que as mulheres se submetem ao aborto por prazer. É um discurso terrível e misógino, apesar de frequentemente defendido por candidatas mulheres.
Pinçados pela imprensa num universo do qual não sabemos a real dimensão pela própria ilegalidade do aborto, dois casos recentes no Rio desmentem os estereótipos. Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos, e Elizângela Barbosa, de 32 anos, eram mães. A primeira tinha duas filhas. A segunda, três filhos. Por razões particulares, não queriam ou não podiam deixar a família crescer. A hipocrisia da sociedade as empurrou para a morte nas clínicas clandestinas. Parece-me que fugir do tema nos debates presidenciais não faz bem às famílias, mas, outra vez, deve ser um problema comigo.
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Por vias diversas, quatro leitores descobriram o nome da peça tocada pela Orquestra Philharmonia no bis do concerto com Nelson Freire: “A garota de London Bridge” (assim mesmo), escrita por um de seus primeiro-violinistas, o uruguaio Adrián Varela. Muito obrigado a Luiz Carlos de Azevedo, David Benechis, Rebecca Sette e Cristina Blaso.

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