Procedimentos relativos a pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade
O Brasil é um país de dimensão continental no qual existem 305 etnias indígenas e mais de 270 diferentes línguas. Essa diversidade étnica que sustenta a riqueza cultural do país também exige do ponto de vista da aplicação do direito o reconhecimento de especificidades de costu- mes e tradições. Entretanto, o Código Penal, o Código de Processo Penal e até mesmo o Estatuto do Índio não foram atualizados de modo a incorporar as mudanças paradigmáticas de respeito aos direitos dos povos indígenas trazidas pela Constituição Federal de 1988, deixando diversas lacunas de procedimentos no tratamento jurídico-penal da pessoa indígena que é acusada, ré ou condenada por um crime.
Diante desse diagnóstico, o Conselho Nacional de Justiça organizou uma série de encontros com representantes de órgãos e entidades do sistema de justiça, do poder judiciário, do poder exe- cutivo e da sociedade civil com a intenção de identificar procedimentos destinados a assegurar que as ações de responsabilização criminal ou de execução penal de pessoas indígenas fossem compatíveis com o texto constitucional brasileiro e também com os tratados internacionais rati- ficados pelo Brasil. Fruto desse processo de diálogo, a Resolução no 287 foi aprovada em 25 de junho de 2019 e estabeleceu diretrizes que regulamentam o tratamento conferido aos indígenas pelo sistema de justiça criminal. Entre as previsões da Resolução estão a identificação da pessoa como indígena por meio da autodeclaração, a previsão do acesso a intérprete e a perícia antropo- lógica, e a priorização do respeito pelas práticas de justiça dos povos indígenas e seus métodos tradicionais para a solução de conflitos.
Além dos procedimentos específicos, a Resolução no 287/2019 deu um passo importante para a incorporação pelo poder judiciário dos ditames da Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Declaração da Organização das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, ao propor a superação da invisibilidade dos povos indígenas no processo penal por meio do registro dessa informação nos sistemas informatizados do Conselho Nacional de Justiça.
A publicação deste Manual atende a um dispositivo da própria Resolução e tem como objetivo oferecer aos tribunais e magistrados caminhos concretos quanto ao modo de implementação das medidas nela previstas. Trata-se de mais um passo para fortalecer o papel do poder judiciário no enfrentamento do estado de crise penal, reconhecendo seus problemas profundos e estruturantes que causam impactos ainda mais graves para populações vulneráveis, como tem sido proposto pelo Programa “Justiça Presente”. A superação do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional passa pela articulação de parcerias com os entes da federação e pela adoção de medidas que atentem, simultaneamente, para a porta de entrada do sistema prisional, evitando o encar- ceramento excessivo e penas desproporcionais, e para as condições de performance e qualidade como se desenvolve a execução penal. Esse é exatamente o sentido da Resolução no 287/2019, que se baseia: (a) na excepcionalidade extrema do encarceramento indígena, (b) no reconhecimento da possibilidade de responsabilização por meio de medidas não estatais ou não restritivas de liberdade e (c) na previsão de garantias específicas aos indígenas em estabelecimentos penais.
Com a implementação dos procedimentos descritos no presente Manual, em cumprimento à Resolução no 287/2019, o poder judiciário brasileiro assumirá o protagonismo na garantia dos direitos previstos na Constituição Federal e em tratados internacionais dos quais o país é signa- tário, resgatando parte da dívida histórica com a população indígena.
Desejo a todos e a todas uma boa leitura!
Ministro José Antonio Dias Toffoli
Presidente do Conselho Nacional de Justiça
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