Texto publicado no Estadão:
A inteligência artificial generativa pode revolucionar a prestação jurisdicional no Brasil?
João Edson de Souza*
Uma breve pesquisa na internet nos mostra que o Poder Judiciário brasileiro já vem utilizando a inteligência artificial (IA) como ferramenta de trabalho. Um bom exemplo é a inteligência artificial Athos, que foi desenvolvida pelo Superior Tribunal de Justiça a partir de junho de 2019, como forma de intensificar a formação dos denominados precedentes qualificados e que vem apresentando resultados positivos. Também ciente da importância do tema, o Conselho Nacional de Justiça vem provendo estudos por meio de grupos de trabalho e fazendo um levantamento sobre o uso dessas tecnologias nos 92 tribunais brasileiros.
Na advocacia privada, com a chegada da IA, também se espera uma guinada radical na forma de trabalho dos escritórios. Embora ainda restrito a grandes escritórios de advocacia, nos Estados Unidos em especial, a IA já ganhou espaço auxiliando na escolha da melhor jurisdição para apresentação de ações coletivas e, também, na previsão de decisões judiciais que envolvam quantias vultuosas de recursos a serem investidos e na estimativa de lucros com a demanda.
Isso tudo é realmente interessante do ponto de vista tecnológico e importante do ponto de vista operacional de instituições públicas e privadas, mas o que de fato importa questionar é até que ponto a IA poderá contribuir com o cidadão que demanda maior agilidade e capacidade de decisão do sistema de justiça, pois muitos aguardam uma decisão definitiva para seus processos. São ações de cobrança, indenizatórias, possessórias, inventários e muitas demandas criminais que aguardam uma solução por anos e até décadas, por vezes.
A dita revolução que a inovadora IA generativa imporá ao mundo, muito anunciada nestes primeiros meses de 2023, pode realmente influenciar e mudar a forma como funciona o sistema judicial, de modo a trazer benefícios aos cidadãos? Sem dúvida, esta não é uma pergunta que possa ser respondida de forma simples e precisa, mas as perspectivas são positivas.
O quanto a IA generativa – inovadora em relação a tudo que tínhamos em utilização até este momento – vai influenciar o mundo jurídico vai depender, principalmente, dos limites impostos pelo Conselho Nacional de Justiça e, também, pelo Congresso Nacional, por razões óbvias. São muitas as formas com que essa ferramenta poderá contribuir para melhorar a prestação jurisdicional. No entanto, a questão mais inquietante, provavelmente, seja a capacidade da IA generativa proferir decisões judiciais, mesmo que essas precisem vir a ser chanceladas por um magistrado, pois somente este está investido de jurisdição para essa função nos termos constitucionais.
Um debate similar será apresentado em relação ao Ministério Público. Diante de milhares de inquéritos policiais, a IA generativa estará, em um futuro (muito) próximo, capacitada a redigir uma peça acusatória, a desencadear a persecução penal? Ou, quem sabe, para verificar se existem condições para um acordo de não persecução penal e redigi-lo? Claro que aqui, também, tudo deve se dar sob supervisão de um promotor de justiça. Mas como essa matéria deverá ser regulada pelo Conselho Nacional do Ministério Público e pelo legislador? São muitas as dúvidas, mas também há certezas relacionadas à capacidade da IA generativa, que vem apresentando ao mundo a sua incrível capacidade e gerando inclusive algum temor por parte de personalidades ligadas a novas tecnologias, as quais divulgaram carta pedindo aos desenvolvedores da IA generativa que suspendam o desenvolvimento do software por algum tempo.
Evidentemente, existirá um debate filosófico profundo sobre as consequências que o uso da IA generativa irá acarretar aos rumos da humanidade. De toda forma, já podemos testar a capacidade da IA generativa, pois sua versão de teste está disponível na internet. Com isso, uma avaliação de suas habilidades é facilmente feita quando se apresenta à IA generativa uma hipótese fática onde um indivíduo agride outro, causando-lhe lesões corporais. Agregam-se a esse cenário elementos que possam construir uma legítima defesa e a pergunta: há legítima defesa na hipótese e o agressor deve ser absolvido? Pronto, a resposta vem de imediato. No caso, a hipótese foi apresentada à IA conhecida como ChatGPT (a sigla GPT refere-se a transformador generativo pré-treinado), e a resposta foi extremamente satisfatória. A IA generativa teceu comentários ajustados sobre a doutrina da legítima defesa em uma situação que comumente podemos reconhecer como tal e foi ainda mais minuciosa quanto se pediu uma resposta alinhada ao ordenamento jurídico brasileiro.
Embora não seja o objeto deste breve ensaio, é preciso explicar que o ChatGPT desenvolve essas respostas em forma de texto com base em uma quantidade enorme de dados digitais colhidos na rede mundial de computadores e outras introduzidas por seus criadores diretamente no software. Então, obviamente, a base de dados do software precisaria vir a ser outra – doutrina, jurisprudência, regulamentos e as leis - para que essa IA generativa venha a servir de ferramenta para os tribunais pátrios; mas está evidenciado que ela pode contribuir de forma excepcional e totalmente inovadora para o sistema de justiça.
Como já foi dito, os limites de atuação da IA generativa dentro da atividade-fim do Poder Judiciário irão depender de regulamentação. Agora, temos que estar atentos ao fato de que o uso disseminado das habilidades da IA generativa nas searas privada e pública, na prestação de outros serviços públicos corriqueiros, por exemplo, poderá impor aos órgãos que compõem o sistema de justiça a necessidade de antecipar o uso da IA, não sendo possível observar eventuais limitações que os regulamentos e a legislação eventualmente fixem para o uso dessa tecnologia no âmbito do Poder Judiciário, principalmente. Isso porque a tendência do uso com sucesso da IA generativa, com capacidade de resposta imediata a demandas de outras áreas estatais, naturalmente levará o cidadão a exigir implementação dessa tecnologia também no sistema judicial, em especial pelo represamento de significativo número de ações em trâmite, fato que sempre foi ponto de crítica nesse setor.
Dito isso, é de se concluir que as iniciativas promovidas por setores do Poder Judiciário e demais órgãos integrantes do sistema de justiça são muito bem-vindas e necessárias, mas certamente tímidas ainda, diante da capacidade apresentada pela IA generativa, que hoje impressiona o mundo. Impõe-se um movimento radical em investimentos tecnológicos e na preparação de magistrados, promotores de justiça e demais instituições envolvidas para a revolução que invariavelmente se aproxima também no sistema judicial.
*João Edson de Souza é doutorando em Direito pela Escola de Direito da Universidade do Minho. Mestre em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa. Membro do Ministério Público do Tocantins desde 2007.
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