quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Presas e esquecidas: dificuldades das mulheres encarceradas no Tocantins

Essa matéria do Jornal do Tocantins de Elâine Jardim foi premiada pelo MPTO na semana passada. Contribui com algumas informações:




Presas e esquecidas: dificuldades das mulheres encarceradas no Tocantins

O Jornal do Tocantins conversou com três mulheres que viveram as amarguras de conviver em presídios no Estado; saiba como elas são atendidas e conheça um raio-x da situação atual; conheça o trabalho de proteção do MPTO


“Cadeia é por tempo. Quando você vê esse alvoroço do lado de fora, é porque o negócio lá dentro tá fervendo. O que vem para os presos é uma comida normal. Só que eu não sei o que eles fazem que a comida chega lá dentro péssima. Se você come dá uma dor de barriga, se não come passa mal” Luzia Eleni de Almeida, de 46 anos (Foto: Emerson Silva) 

Atualizada às 11h44, de 31/10/2019

Liberdade. Essa palavra possui alguns significados e entre eles está, segundo o dicionário, o “grau de independência legítimo que um cidadão, um povo ou uma nação elege como valor supremo, como ideal”. Simplificando, seria o direito de ir e vir sem empecilhos. Essa liberdade é retirada do cidadão ao não seguir as leis, ou seja, quando cometem crimes. E é nesse momento que o pesadelo começa, não só por perder a tão valorizada liberdade, mas por perceber que o local para se pagar esse preço é caótico. E essa é a realidade das cadeias públicas femininas do Tocantins, geridas pelo Sistema Prisional ligado à Secretaria de Cidadania e Justiça (Seciju).

“Cadeia é por tempo. Quando você vê esse alvoroço do lado de fora, é porque o negócio lá dentro tá fervendo. O que vem para os presos é uma comida normal. Só que eu não sei o que eles fazem que a comida chega lá dentro péssima. Se você come dá uma dor de barriga, se não come passa mal”. Essa reclamação é de uma ex-detenta presa em 2013 pelo crime de tráfico de drogas, e sentenciada por oito anos e três meses de reclusão. Luzia Eleni de Almeida, de 46 anos, cumpriu em regime fechado quatro anos e dois meses da pena, e o restante na semiliberdade.

Durante o tempo em que esteve reclusa, Luzia segue relembrando as diversas dificuldades que enfrentou dentro da Cadeia Pública de Talismã. “O que eu convivi lá dentro não foi muito bom, porque no começo a gente chega muito louco com a cabeça virada, transtornada. Só que estar fechado não é uma coisa muito boa né?”, complementa. Viúva, ela tem quatro filhos e conseguiu manter a guarda de todos eles. Três são homens, dois moram com ela e outro vive fora de casa. Um deles é órfão, e morava em um abrigo onde um dos seus filhos esteve quando ela ficou presa. Quando ele completou 18 e ela obteve liberdade, foi morar com ela. A filha optou por escolher outra família.

A cozinheira Osmarina Alves dos Santos, de 57 anos, recebeu 12 anos de condenação por tráfico de drogas em 2012. Assim que entrou na Unidade Prisional Feminina de Palmas (UPF) começou a trabalhar, fato que contribuiu para a redução de sua pena. “Cozinhei para as presas e para a polícia. Todo o tempo que estive lá foi trabalhando, cozinhando, lavando, limpava a unidade, fazia tudo. Eu lavava roupa para comer um miojo”, lembra.

Durante cinco anos que esteve presa, Osmarina recebeu apenas duas visitas da sua filha. “Foi muito ruim não receber visita, deixar minha filha pobre sozinha e eu sem poder ajudar porque fui presa de forma injusta”.

Ao sair da cadeia, Osmarina montou um restaurante em Araguaína. Comprou as coisas com o nome da sua filha. “Eu não tenho nada no meu nome. Ninguém vai vender para uma ex-presa”, finaliza.

Sem visibilidade

“Sou uma sobrevivente do sistema porque trabalhei. Posso te garantir que se eu não tivesse a oportunidade de trabalhar eu não teria saído. Você fica inerte aquela situação e não tem o que e acabar se envolvendo em muitos conflitos”, diz uma ex-detenta de 31 anos, que preferiu não se identificar, mas contou como é a realidade na cadeia feminina, local onde cumpriu seis anos de regime fechado e dois no semiaberto de uma condenação de 15 anos.
Ela relembra os momentos de dificuldade, mesclando sentimentos de tristeza com o pensamento do quão é ambígua ‘a tal liberdade’. “Se as coisas acontecessem conforme a Constituição diz, tudo seria mais lindo. Mas aqui fora em liberdade já é difícil, imagina lá dentro. Quando você vai preso, o Estado não tem estrutura para separar presos temporários e condenados. Não há essa divisão. Consequentemente você não alcança seus direitos. O Estado te exclui da sociedade, não existe ressocialização”, pondera.
A ex-detenta ainda percebe que, mesmo situações semelhantes, as diferenças são gritantes entre presídios masculinos e femininos: “A mulher é de fato mais abandonada. Porque o homem quando ele alcançar o direito dele, a princípio eles fazem a greve de fome, as rebeliões e os órgãos dão visibilidade a eles. As mulheres são praticamente inofensivas e os índices de motins, fugas e agressões no sistema prisional feminino são quase zero. Somos pacíficas e a gente acaba não conseguindo alcançar direito nenhum”.
Além da falta de visibilidade, os problemas estruturais também são preocupantes. “A minha impressão é de que a Seciju é muito rica, mas o Sistema é pobre. A gente vive em um ambiente insalubre, úmido, escuro. Tem um ambiente específico lá que é melhor, mas acaba sendo ruim pela quantidade de gente junta na mesma cela”, relata.
“Se a pessoa quer sair de lá com um psicológico bom ela precisa trabalhar dentro do Sistema. Se ela não trabalhar, sai doente. Eu tenho inúmeras mágoas, mas eu prefiro guardar elas e viver minha vida. Ser tratada como um animal, ser tratada sempre com desconfiança. Você só cresce por conta própria. Não existe ressocialização, pode existir da lei, mas não na prática”, lamenta. A mulher que não quis se identificar conseguiu terminar um curso de nível superior dentro da unidade prisional com o apoio de sua família. Hoje faz a sua segunda graduação e atua como doméstica no contraturno escolar.

Falta de estrutura e até produtos de higiene pessoal

Hoje o Estado do Tocantins possui seis unidades prisionais femininas administradas pela Seciju: sendo uma de regime semiaberto e cinco de regime fechado. Estão sob administração da pasta: Unidade Prisional Feminina de Babaçulândia (UPF), Unidade Prisional Feminina de Lajeado (UPF), Unidade Prisional Feminina de Palmas (UPF) Unidade de Regime Semiaberto de Palmas (Ursa), Unidade Prisional Feminina de Pedro Afonso (UPF) e Unidade Prisional Feminina de Talismã (UPF). Segundo o promotor de Justiça João Edson de Souza, unidades femininas têm uma condição melhor que as unidades masculinas, mas isso não quer dizer que são totalmente adequadas. “São melhores em comparação com as masculinas, mas ainda temos um déficit muito grande no sentido da qualidade das acomodações. Por exemplo, em Lajeado já tramita uma ação civil pública que pede a reforma do local e da rede elétrica”, explica, destacando a atuação do Ministério Público do Estado do Tocantins (MPTO) na questão. Nenhuma possui local próprio para visitas íntimas.
“Temos dificuldades em relação ao kit de higiene para as mulheres. Essa é uma situação que a gente vem enfrentando e já existe uma ação para compelir o Estado a fornecer regularmente, mas a gestão não concluiu a licitação para isso, então os kits de higiene pessoal são fornecidos através de parcerias com a comunidade e com a sociedade civil, que está conseguindo suprir enquanto o Estado não responde a esta demanda”.

Mulher trans sem local certo

Além das ações movidas pelo MPTO para buscar melhorias para as mulheres que cumprem pena em unidades prisionais femininas, o promotor ainda cita outra situação: a falta de preparo do Estado no atendimento da mulher transgênero. “Temos uma transexual que ocupa uma cela sozinha da cadeia de Lajeado e responde por crime em Araguaína. Ela fica abrigada na unidade feminina. Só ocorre que tem que ter alguns cuidados, pela questão do próprio contato, para que não ocorra nenhuma outra circunstância que pode gerar responsabilidade ao Estado. Então ela fica sozinha na cela, enquanto as outras três celas ficam acima da capacidade”, explica.

Ações do MPTO em prol das reeducandas

A educação está entre as ações do órgão para dar um futuro melhor para as mulheres que cumprem pena no Estado. “Em Lajeado, com auxílio da sociedade civil, foi construída uma sala de aula onde as meninas têm cursos variados desde educação básica até cursos específicos. Nesta unidade, aulas regulares que os professores vêm de Palmas. Utilizando os valores advindos das transações penais da comarca por propostas formuladas ao Ministério Público, o órgão direcionou esses valores para que essa organização social construir essa sala de aula. E nós fiscalizamos as contas tudo direitinho e o Estado disponibiliza os professores”, explica o promotor.
Souza ainda destaca que todas as unidades receberam atendimento relacionado à campanha Setembro Amarelo, que visa o combate ao suicídio, já que, conforme os relatos das personagens, a prisão mexe de forma negativa com a mente das mulheres, o que pode acarretar uma série de problemas psicológicos.
Também existe uma atenção especial no caso da reeducanda estar gestante. Atualmente não há nenhuma mãe presa acompanhada da criança no Estado. “Entretanto, em regra, procura-se instituir a prisão domiciliar em exercício da criança que precisa da mãe”, finaliza o promotor de Justiça.

Seciju

Sobre as condições de higiene das unidades prisionais femininas do Tocantins, a Secretaria de Estado da Cidadania e Justiça (Seciju), por meio de seu Núcleo de Apoio Técnico (Natec),  informou que as empresas responsáveis para fornecer kits de higiene íntimos (aparelho de depilar, condicionador, creme dental, desodorante, escova dental, esponja de banho, fralda descartável, lençol com elástico, lençol sem elástico, luvas, papel higiênico, sabonete, shampoo, toalha de banho, colchão e chinelos já assinaram o contrato de licitação com com o Estado, com publicação do extrato no Diário Oficial do Estado (DOE/TO) do dia 10 de outubro de 2019. Os rodutos já estão sendo entregues nas unidades, conforme a pasta.


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