Enquanto os governos estaduais e o governo federal não adotam medidas efetivas para corrigir as deficiências do sistema de segurança pública o jeito é improvisar:
* material publicado em 31 de agosto de 2024 pelo Estadão em https://www.estadao.com.br/politica/no-marajo-guarda-municipal-usa-bufalos-e-pessoas-do-bem-contra-crimes-complexos/
No Marajó, guarda municipal usa búfalos e ‘pessoas do bem’ contra crimes complexos
Muaná, no Pará, improvisa soluções para atender à demanda da população por segurança e enfrentar crimes como tráfico e ‘pirataria’; guarda municipal de cidade marajoara traduz fenômeno da municipalização da segurança pública no País
ENVIADO ESPECIAL A MUANÁ (PA)
Em uma cidade ribeirinha a sudeste da Ilha de Marajó, uma guarda civil municipal única no mundo pela forma como trabalha e pela dinâmica dos crimes que enfrenta. Em Muaná (PA), o patrulhamento é auxiliado por búfalos, capazes de percorrer ruas, campos e várzeas com destreza. Símbolos dessa região do Pará, os animais servem a uma tropa reforçada por moradores das vilas, “pessoas do bem” escolhidas pela prefeitura para ações de prevenção e repressão a crimes que vão da “pirataria” e do tráfico de drogas ao abuso sexual de crianças e adolescentes.
Onde fica
Apesar da peculiaridade dos búfalos, a Guarda de Muaná é uma síntese do fenômeno da municipalização da segurança pública no País, tema da série “Polícia das cidades”. Diante de desafios complexos, gestores municipais têm buscado protagonismo na pauta da violência. Para tanto, em vários casos, recorrem a improvisos que solucionam demandas e geram dividendos eleitorais, mas acabam criando outros problemas.
Muaná tem 45 mil habitantes distribuídos por um território 2,4 vezes maior que o da cidade de São Paulo. Não foge à regra da região onde impera crônica miséria – e, ao mesmo tempo, um inigualável patrimônio cultural e ambiental. É um típico lugarejo onde tudo gira em torno da prefeitura, mais de 75% da população demanda benefícios sociais e a política é marcada pela briga ferrenha entre famílias rivais.
A sede de Muaná está a quase quatro horas de barco de Belém, na direção oposta à da margem turística do Marajó, mas algumas localidades do município só podem ser acessadas com mais sete horas de navegação. Para proteger o vasto território, a prefeitura reúne 51 guardas, uma viatura, duas motos e duas lanchas. Além disso, é provavelmente a única do planeta que conta também com dois búfalos na estrutura da segurança pública – modelo inspirado no 8º Batalhão da Polícia Militar, em Soure (PA).
A tropa de Muaná mistura guardas efetivos, vigilantes convertidos em guardas e cidadãos comuns contratados temporariamente. O grupo é composto por homens e mulheres com idades entre 23 e 71 anos. Dos 51, só 17 são concursados. O restante são comerciantes, catadores de açaí, pescadores de camarão, mecânicos, uma técnica em enfermagem ou jovens recém-saídos da escola considerados referências nas suas comunidades – e com prestígio junto à prefeitura.
Para complementar a renda de um salário mínimo, a maioria dos temporários se dedica a outros ofícios no contraturno. Eles passaram por um “curso básico” oferecido pela Guarda de Belém, receberam fardamento e foram às ruas cumprir escalas em um projeto da gestão atual que ganhou corpo em 2022. Não usam arma de fogo, só a de choque e spray de pimenta. Mas lidam com tudo: tráfico de drogas, violência doméstica, briga de bar, patrulha escolar e prestam até serviços funerários.
A condição da Guarda de Muaná é estranha – e irregular – para quem vê de fora, mas não constrange a localidade cujo maior orgulho, há dois séculos, é o protagonismo civil. A 28 de maio de 1823, os muanenses fizeram da cidade a primeira do Grão-Pará a aderir à Independência do Brasil. O feito dos “heróis que deram fim ao jugo português” é comemorado anualmente há dois séculos em volta do monumento erguido na praça central em homenagem à “verdadeira nobreza da nossa terra, o povo”.
“Não queremos preparar um caboclo para dar trabalho à polícia”
O prefeito Biri Magalhães (PSD) disse reconhecer que o modelo de contratados não é o ideal e que entre seus planos para os próximos anos, caso consiga que seu grupo permaneça no poder, está a realização de concurso público.
“É importante que os funcionários sejam concursados. É aquela situação... você prepara um temporário para ser guarda e, depois, ele pode usar para outro caminho. Um dos nossos objetivos para o ano que vem, se a gente conseguir vencer a eleição, é o concurso para a Guarda Municipal. Aí a gente consegue efetivar e não preparar um caboclo desse para ir dar trabalho para a polícia”, afirmou.
Magalhães recebeu a reportagem no escritório de onde despacha, no segundo andar da casa do pai – vereador por seis mandatos –, na parte central da cidade, pois não frequenta a sede da prefeitura. O candidato à sucessão é o próprio filho, Birizinho (PSD), lançado pela primeira vez. O trabalho da Guarda virou um ativo para a campanha. “Nas pesquisas, a segurança pública sempre vem muito cobrada. Com a presença da Guarda, a gente tem recebido muitos elogios”, disse o prefeito, antes de emendar: “A população olha para as polícias Militar e Civil não com bom olhar. Mas, graças a Deus, nossa Guarda não teve nenhuma fala de má postura.”
O abuso sexual, a ‘pirataria’ e o tráfico que vem pelas águas
Assim como em toda a Ilha do Marajó, a rotina de Muaná é governada pelo comportamento das marés. Seja para o êxito da técnica que faz dela a “cidade do camarão”, seja para definir o ritmo do transporte de pessoas, mercadorias e serviços pelos rios e igarapés que inundam no inverno e secam no verão, as duas únicas estações marajoaras.
As demandas que aparecem em maior quantidade às autoridades são relacionadas à violência doméstica, ao roubo de gado e de motores de barco, ao tráfico de drogas e à “nova pirataria”. Este crime consiste na utilização de embarcações para assaltos a outros barcos ou mesmo a propriedades ribeirinhas.
Em uma tarde úmida com sol escaldante na vila de Ponta Negra, na margem da baía do Marapatá, a ribeirinha Adelaide (nome fictício), 53, ofereceu à reportagem a varanda de casa como abrigo. Era um imóvel de alvenaria que destoa das palafitas que predominam na ilha. Com a vista para os açaizeiros de onde tira o seu sustento, ela contou ainda não ter superado o trauma de um crime do qual fora vítima há três meses.
Dois homens encapuzados portando armas longas chegaram de barco, entraram na casa e levaram tudo o que conseguiram. A perda mais dolorosa foi a do anel de formatura do curso de Pedagogia que acabara de comprar por R$ 3,5 mil depois do duro processo de graduação.
“Chegaram pedindo dinheiro e falando que iam matar o meu marido. Parece que a vida parou, não consigo ficar tranquila, atrapalhou tudo na vida da gente. Não tive mais paz.”
Adelaide,
(nome fictício)
Ela não consegue mais ficar desacompanhada do marido, apesar de a lida diária exigir cada um em frentes distintas de trabalho. Os criminosos ainda invadiram uma casa vizinha antes de fugir pelos canais do rio.
A Guarda de Muaná é a referência para os ribeirinhos em casos como esse. Os agentes prestaram o primeiro atendimento e transferiram a ocorrência para a polícia. Ninguém foi preso. A PM conta com cerca de 25 homens em Muaná. A Civil, com dois delegados. Ambas fazem operações esporádicas nas vilas, mas as bases ficam na parte central da cidade, a mais de uma hora de lancha das vilas mais populosas.
Ex-comandante filtra ‘pessoas de bem’ e se projeta com búfalo
O articulador da Guarda de Muaná é um ex-comandante da instituição. Pedagogo de formação, Joelson Gonçalves recebeu do prefeito Biri Magalhães carta branca para organizar a força municipal e selecionar os homens e mulheres contratados para o trabalho.
“Quando você vive num local onde não tem a presença das forças de segurança pública, todas as pessoas ficam suscetíveis a todos os tipos de crime. Sabemos que o diferencial está na presença.”
O trabalho rendeu projeção e uma bandeira de campanha. Em março, a gestão criou pela primeira vez uma Secretaria de Segurança Pública, com Joelson Gonçalves como o primeiro titular. No mês seguinte, ele se desvinculou no prazo da legislação eleitoral para concorrer a vereador pela base do prefeito.
Coube a Gonçalves o desenho do Grupamento Ambiental Bubalino (Gabu), modelo de atenção voltada à população ribeirinha e com o auxílio de búfalos. As equipes são divididas entre a sede e quatro inspetorias localizadas nas vilas com maior povoamento. Segundo ele, não seria viável deslocar servidores do centro para o interior diariamente. Além do mais, há a necessidade de se entender as relações e as características de cada vila para fazer o trabalho.
“Quando você vive num local onde não tem a presença das forças de segurança pública, todas as pessoas ficam suscetíveis a todos os tipos de crime. Sabemos que o diferencial está na presença.”
Joelson Gonçalves,
Pedagogo
“Essa seletiva de guardas municipais é feita de forma minuciosa. Temos que ter pessoas do bem, pessoas que não tenham passagem pela polícia, pela Justiça, pessoas que sejam idôneas, com vida exemplar”, disse. Ele afirma que ser alinhado com o governo municipal não é determinante.
O búfalo policial e as calamidades do Marajó
A pobreza instituiu uma triste tradição no distrito de São Francisco da Jararaca, a quase duas horas do centro de Muaná. A margem da vila é rota de grandes embarcações de passageiros da Amazônia. A cada passagem, crianças e mulheres vão remando em canoas em direção aos navios em busca de esmolas. Os passageiros do Norte arremessam comida, roupas e brinquedos, que são recolhidos nas marolas por meninos e meninas. A Guarda de Muaná tem ciência do risco extra para crianças. Um grupo de agentes atua na localidade, inclusive em canoas.
A uma hora do centro, o distrito de São Miguel do Pracuúba. No local, um grupo de guardas municipais contratados patrulha as vielas elevadas de madeira, os campos e as ruas centrais. O Uase, búfalo da raça murrah, ajuda nos trabalhos. Os agentes dizem que é preciso ir também pela linha repressiva nessa vila. Eles abordam suspeitos, impõem ordem e, vez ou outra, prendem alguém.
“A gente sabe que São Sebastião da Boa Vista, do outro lado do rio, é um lugar muito pobre, com muita vulnerabilidade social e com um tráfico de drogas forte. Sem a Guarda Civil de Muaná e sem a inspetoria aqui, o tráfico já teria se espalhado no Pracuúba”, diz Joelson Gonçalves, ex-comandante da Guarda.
Próximo Capítulo:
Reportagem: Vinícius Valfré; Editor Executivo: Murilo Rodrigues Alves Editora de infografia: Regina Elisabeth Silva; Editores-assistentes de infografia: Adriano Araujo e William Mariotto; Designer multimídia: Lucas Almeida; Infografia Multimídia: Marcos Müller e Marcos Brito.
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